domingo, 24 de fevereiro de 2008

Gestalt


Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah, o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a isaiah, e começou pensando spizonismos: "de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra". Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para seu próprio instante o spinoza citado aí de cima acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e por isso isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente doente parece, sempre doente, é o que o mais dizia na sua língua. é doença, não é, hilde? hilde, sua mãe, sorria, ach nem, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de isaiah, isaiah agachou-se, redondo de afago e foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parêntese devo me permitir antes de terminar: isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.



Hilda Hilst

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

TRANSCENDÊNCIA, ESPERANÇA E ÊXTASE

Uma visão histórica da paixão e do divertimento político


Talvez o segredo mais bem guardado do nosso tempo seja que a política, como prática democrática, pode ser "divertida", não apenas no sentido do entretenimento mas também como algo capaz de se tornar profundamente estimulante e até de criar momentos de puro êxtase. A minha geração teve um vislumbre disso em Maio de 1968, e noutros momentos dessa década, numa altura em que pessoas desconhecidas se abraçavam nas ruas e o impossível parecia, por um instante, ao alcance da mão. As rebeliões produzem de vez em quando momentos como estes, de transcendência e de esperança. Multidões dançaram nas ruas de Havana quando Batista fugiu, em 1959; 30 anos depois, dançaram também em cima do muro de Berlim, quando a Alemanha Oriental sucumbiu ao movimento democrático. Houve festa na Espanha Republicana dos anos 30, e uma "anarquia embriagada" em São Petersburgo, durante 1917. Em momentos como estes a política transbordou das barreiras dos partidos, dos comitês, das eleições e da legislação, tornando-se uma espécie de festa.

Ninguém imagina hoje que o processo político possa ser fonte de uma paixão transcendente. Por toda parte, a participação em eleições encontra-se em queda, até mesmo em lugares, como é o caso dos países ex-comunistas, nos quais seria talvez de se esperar que as eleições com múltiplos partidos tivessem o encanto da novidade. Nada demonstra melhor o recuo emocional do processo democrático do que as convenções dos partidos políticos nos Estados Unidos, que alcançaram um tão profundo nível de tédio em 1996 que as redes de televisão chegaram a considerar a possibilidade de estarem ausentes em 2000.

Nas raras ocasiões em que hoje deparamos com ela, a paixão política talvez pareça exótica, anacrônica, como o vestígio de um passado heróico. Um colunista da Harper’s, por exemplo, assistiu em 1999 a um concerto em Madrid, comemorativo da presença da Brigada Lincoln na Guerra Civil de Espanha, relatando então: "...o espaço está em ebulição. A paixão está no ar, um aroma fortemente intoxicante que se saboreia ao mesmo tempo que se inala... Quando Labordeta... começa a tocar a sua ‘Canción de la Libertad’, eles enlouquecem. Cantam em coro, fazendo tremer o teto do estádio sobre os seus pilares. Milhares de jovens punhos enchem o ar. Por todo o lado há gente a chorar... Eu próprio tenho problemas para controlar o choro, ainda que não saiba explicar o motivo. Talvez porque uma paixão política como esta pareça, na minha vida, perdida para sempre".

Não possuímos um vocabulário que sirva para descrever este tipo de experiência, pelo menos em inglês. Há formas ricas e matizadas para falar do amor entre duas pessoas, desde a simples atração sexual até ao prazer de viver em comum e ao compromisso, mas existem poucas palavras para descrever esse amor, se é disso que se trata, que pode unir milhares de pessoas num dado momento. "Comunidade" é a palavra que mais provavelmente nos virá à cabeça, mas nas bocas dos "comunitaristas" do centro político (dos quais Hillary Clinton é a mais conhecida representante) converteu-se num outro sinal do conformismo moral que os dirigentes conservadores constantemente procuram impor. Além disso, os grandes momentos de euforia política não são celebrações de comunidades pré-existentes, mas antes a criação de comunidades a partir de grupos de pessoas que, na sua maioria, anteriormente se não conheciam. Na multidão revolucionária, as velhas hierarquias e os conflitos dissolvem-se. Brancos e negros marcharam juntos nos movimentos americanos dos anos 60; católicos e huguenotes abraçaram-se durante a Revolução Francesa. Unidos por um objetivo comum e fortalecidos pela força do número, somos capazes de nos "enamorar" de completos estranhos.

"Amor" é de fato a palavra que os participantes usaram uma e outra vez para descrever os arroubos da experiência revolucionária. O romancista Flaubert, que participou na Revolução Francesa de 1848, descreve uma personagem que, envolvida no "magnetismo da multidão entusiasmada... tremia na exaltação de um amor imenso, de uma ternura suprema e universal, como se o coração de toda a humanidade batesse naquele momento no seu peito." De forma muito parecida, uma testemunha da Comuna de Paris de 1871 escreveu: "Abraça-me, camarada, que partilhas do meu cabelo grisalho! E tu, rapaz... vem a mim também!... Parece que a alma da própria multidão enche o meu peito. Oh! Se só a morte me pudesse levar, se uma bala apenas me pudesse matar no meio desta luz de ressurreição."

As fronteiras do eu dissolvem-se, o corpo expande-se, na imaginação, para abarcar a multidão. Estes são sentimentos efêmeros, mas podem ser preservados por intermédio da arte, ou mantidos e ampliados através do ritual. Em 1790, por exemplo, no primeiro aniversário da Tomada da Bastilha efetuaram-se em toda a França festividades que procuraram recriar a excitação da insurreição original. O historiador Jules Michelet reportava que na cidade de Saint-Andèol, "as pessoas... corriam a abraçar os demais, e, de mão na mão, construíram uma imensa farândula(dança provençal), a qual incluía a todos sem exceção, estendendo-se pela cidade, pelo campo, desde as montanhas de Ardéche, até aos prados do Reno, ao mesmo tempo que o vinho corria pelas ruas..."

As ciências do comportamento humano têm pouco para dizer acerca da experiência do êxtase coletivo. No domínio da psicologia, Freud foi beber no escritor francês conservador Gustave Le Bon, que via o comportamento das massas revolucionárias como algo de perigoso e doentio. Freud admitia que o gozo coletivo da multidão pudesse ser de uma singular intensidade: "as emoções dos homens são alteradas... a um nível que raramente alcançam noutras condições, sendo uma experiência de prazer..." Tratou porém de incluir estes sentimentos extraordinários dentro do conhecido triângulo edípico da família nuclear: Os membros da multidão demonstravam "uma extrema paixão pela autoridade", "uma sede de obediência" a um líder que era apenas o substituto do "temido pai originário." O fato de as massas insubmissas se encontrarem, pelo menos ao nível da experiência consciente, quase sempre comprometidas com a queda de autoridades tradicionais – reis e ditadores – não impressionou o grande patriarca da psiquiatria ocidental.

A sociologia contemporânea possui pouco mais para oferecer. Reagindo contra a perspectiva reacionária de Le Bon, os sociólogos americanos tenderam a ignorar os aspectos emocionais dos movimentos sociais, exceto no caso dos grupos fascistas e racistas, nos quais as emoções suscitadas são em regra o ódio e o medo. Como escreveu nos inícios dos 1980 um dissidente desta tradição, o sociólogo norte-americano John Lofland: "Historicamente, os acadêmicos sociólogos do comportamento coletivo estudavam fenômenos de massas e multidões que se encontravam dominados por um ou outro de três tipos de intensa excitação emocional: medo, hostilidade, e prazer... Com o decorrer do tempo, o terceiro elemento desta trindade – o prazer – foi gradualmente posto de lado... Quem fala hoje em dia seriamente de ‘multidões em êxtase’, ‘epidemias sociais’, ‘febres’, ‘histerias religiosas’, ‘apaixonados entusiasmos’, ‘danças frenéticas e desenfreadas’?..."



Ao invés, os movimentos políticos progressistas são analisados inteiramente como empresas racionais nas quais as pessoas, motivadas por ideologias, guiadas por "fatores organizativos," e inseridas em "estruturas sociais," prosseguem metas estritamente instrumentais. Assim, o estudo do prazer coletivo foi limitado à observação de "delírios" e de "modas".

Diante da ausência de análises acadêmicas, o nosso conhecimento da paixão coletiva parece-se um pouco com a compreensão vitoriana do sexo. Os adultos vitorianos achavam que os corpos humanos podiam unir-se de formas as quais, ainda que impronunciáveis, conduziam muitas vezes à procriação. Muitos, se não todos eles, devem também ter sabido por experiência própria que tais emparelhamentos podiam constituir momentos de intenso prazer. Mas não existia forma de falar acerca dos prazeres do sexo; a palavra "orgasmo," por exemplo, não entrou no vocabulário popular senão pelos meados do século XX. De forma idêntica, sabemos hoje que grandes quantidades de pessoas podem juntar-se de formas que podem nos parecer, como espectadores, excitantes e até embriagadoras; e isto o sabemos porque a televisão nos mostra a todo o instante motins, revoluções, e as "histerias" dos amantes dos desportos e da música. Mas não possuimos um vocabulário para os sentimentos que podem ser inspirados e criados por tais eventos. Até aqueles de nós cujas identidades políticas foram forjadas em grandes momentos de insubmissão permanecemos, em regra, mudos acerca das profundidades emocionais do nosso compromisso. Podemos falar "dos temas", mas não dos estados de êxtase.

Existe sem dúvida alguma, para falar apenas da tradição européia, uma "história escondida" de êxtases coletivos, à espera de ser desenterrada e colocada num contexto politicamente compreensível. Muito antes de existir algo que pudéssemos reconhecer como movimentos "políticos", existiam os movimentos extáticos dos oprimidos, os quais usavam com frequência a linguagem e os símbolos da religião. Os antigos gregos, por exemplo, estavam familiarizados, desde os tempos de Homero, com o fenômeno do menadismo, através do qual os adoradores de Dionísio, quase exclusivamente mulheres, periodicamente abandonavam as suas tarefas domésticas para subir às montanhas, onde bebiam vinho, bailavam em êxtase até de madrugada e, por vezes, segundo se conta, capturavam animais vivos, esquartejando-os e comendo-os crus. É difícil, porém, determinar em que medida os relatos do menadismo foram distorcidos pelos preconceitos e pelos medos dos seus contemporâneos do sexo masculino. Mas é consensual entre os acadêmicos que as mênades representavam um culto histórico real que atraía muito as mulheres, as quais se encontravam, por essa altura, completamente excluídas de qualquer outra forma de vida pública. Se elas não podiam rebelar-se em sentido literal, podiam ao menos desfrutar da descarga emocional destas falsas rebeliões levadas a cabo sob a forma de ritos devotos, ainda que não ortodoxos.

A Europa experimentou fenômenos similares, ainda que menos ritualizados, com as "dança-manias" dos séculos XIV e XV. Começando nos alvores da Peste Negra que dizimou a Europa na década de 1370, turbas de gentes – quase inteiramente das classes mais humildes – "...formavam círculos com as mãos entrelaçadas, parecendo ter perdido todo o controle de si mesmos, continuavam dançando... juntos durante horas em selvagem delírio, até que por fim tombavam no chão completamente exaustos."

Os padres revelavam-se impotentes para deter os dançarinos, que às vezes afirmavam que aquela dança honrava a um determinado santo, e outras vezes que era o resultado de uma maldição imposta como castigo pelos pecados. Desde o século XIX, a explicação acadêmica convencional tem sido que os frenesis de dança devem ter sido induzidas por alguma poção química, talvez a ergotina, que se relaciona com o LSD e que pode contaminar as culturas do centeio. Mas tais explicações não dão conta da reconhecida capacidade contagiante das folias, cujos participantes são recrutados facilmente entre os transeuntes. Uma melhor explicação poderia ser que os delírios representavam uma espécie de proto-rebelião, em parte provocada pela campanha da Igreja para suprimir a antiga tradição do baile nos cemitérios, e dentro das próprias igrejas. A dança extática em círculos – transformando-se por vezes naquilo que a igreja via como uma orgia desenfreada – tinha sido parte da tradição da fé cristã pelo menos desde o século III, e, antes ainda, também das tradições pagãs. Com o passar do tempo, expulsos dos seus cenários habituais, os dançarinos foram para a rua, a partir da qual lançavam muitas vezes os seus desafios, ameaçando, ou atacando abertamente, os padres.

Durante a Baixa Idade Média, a igreja católica eliminou gradualmente, não apenas as danças religiosas e as seitas milenaristas, mas também as transgressões festivas associadas com a Festa dos Loucos, na qual os próprios sacerdotes haviam, em dada altura, desempenhado um papel dirigente. Expulso aos empurrões dos cenários religiosos, o êxtase coletivo apenas conseguirá exprimir-se através do espaço mais secular do Carnaval. Num certo sentido, o Carnaval europeu da Baixa Idade Media e dos inícios do período moderno, representa uma forma institucionalizada das folias da dança. O povo celebrava, bebia e dançava durante dias sem parar, geralmente em círculos, filas ou grupos de três. Além disso, os carnavais incluíam habitualmente competições desportivas, representações dramáticas, elaboradas vestimentas e, às vezes, atividades tão anti-cristãs como o sacrifício de animais e a adoração de deusas pagãs. Aquilo que maravilha os historiadores de hoje é a quantidade "verdadeiramente prodigiosa" de tempo dedicado a essas atividades: os camponeses franceses do século XVI podiam esperar passar um total de três meses por ano, um dia em cada quatro, em festividades de Carnaval. No norte da França, só a celebração anual da fundação da igreja de uma paróquia durava oito dias. Na Espanha do século XVII, um contemporâneo estimava que um total de cinco meses em cada ano eram dedicados aos santos e celebrados com festividades.

Foi o escritor dissidente soviético Mikhail Bakhtin quem resgatou o Carnaval da marginalidade da história, assinalando que este representava uma rebelião ritualizada contra a autoridade em todas as suas formas. No Carnaval, os pobres criavam um "tempo utópico de comunitarismo, liberdade, igualdade e abundância", marcado pela inversão de todas as hierarquias normais: os homens podiam disfarçar-se de mulheres e vice-versa, os laicos de clérigos, enquanto reis e padres eram simbolicamente ridicularizados. Reveladoramente, os mesmos temas de abandono extático e de provocação da hierarquia aparecem na tradição carnavalesca mundial, até em áreas aparentemente não tocadas pela influência européia. Nos inícios do século XVIII, um visitante holandês encontrou os africanos da costa da Guiné celebrando "...uma festa de oito dias acompanhada com todo o tipo de Cantos, Bailes, Saltos, Sátiras e Festividades; tempo durante o qual está permitida uma total liberdade de burla, e o Escândalo é tão altamente exaltado, que eles podem proferir todo o tipo de Insultos, Vilanias e Mentiras acerca dos seus Superiores, assim como dos seus Inferiores, sem serem castigados nem minimamente impedidos."

Como escreveu Bakhtin o riso popular festivo "significa a derrota do poder, dos monarcas terrenos, das classes superiores terrenas, de todos os que oprimem e controlam", pelo menos pelo tempo que duram as festividades. Alguns acadêmicos contestaram a interpretação de Bathkin, assinalando que, em vez de ser uma verdadeira rebelião, "o Carnaval foi sobretudo sentido como uma aventura permitida, uma ruptura aceitável da hegemonia, uma descarga tão perturbadora e relativamente ineficaz como uma obra de arte revolucionária." Porém, considerado como forma de arte popular, o Carnaval foi-se transformando de uma forma crescente, à medida que se entrava na época moderna, em rebelião declarada. Na França do século XVI, as festividades em Maras e Romans tornaram-se uma cobertura para insurreições armadas dos pobres das cidades contra a nobreza. De forma semelhante, os carnavais das Caraíbas, no século XIX, serviram de cenário para numerosas rebeliões de escravos. Como escreveram os acadêmicos britânicos Stallybrass e White: "De fato, impressiona a frequência com a qual os enfrentamentos sociais violentos aparentemente ‘coincidiam’ com o Carnaval… considerar que existe apenas uma ‘coincidência’ entre os carnavais e as revoltas sociais é algo profundamente enganoso, porque… apenas em finais do século XVIII e princípios do XIX – e apenas em algumas regiões – se pode falar razoavelmente de uma política popular totalmente dissociada do carnavalesco."

As primeiras revoluções políticas de massas identificáveis no Ocidente – por oposição aos ocasionais excessos carnavalescos dos séculos anteriores – foram as revoluções americana e francesa de finais do século XVIII. Nelas, pela primeira vez encontramos a emergência de uma hierarquia da direção revolucionária, debates organizados, e aquilo que os sociólogos considerariam como metas racionais. Mas essas primeiras revoluções, com toda a sua mortal formalidade, eram também devedoras das tradições do Carnaval: os rebeldes da América do Norte dançavam à volta das "Árvores da Liberdade", sucessoras das maypoles*, tão centrais nas festividades populares britânicas e francesas. Os aldeãos franceses usavam as maypoles como uma "espécie de alarme visual" para assinalar o despontar de uma revolta. "Não existe dúvida alguma", para a historiadora francesa Mona Ozouf, acerca do "vínculo privilegiado entre a maypole e a alegria coletiva", seja na sua variante "política" ou meramente festiva. Em 1791, por exemplo, os camponeses de Perigord puseram maypoles nas praças públicas, atacaram os símbolos do poder feudal e arrancaram os bancos das igrejas, "tudo isso com certa violência", segundo reportava a Assembléia Nacional de Paris, "mostrando a efusividade da sua alegria". De modo que não é sem certa justiça que Henri Lefebvre, pai intelectual do movimento situacionista francês dos anos sessenta, podia proclamar, "as revoluções do passado eram, sem dúvida, festivais – cruéis sim, mas será que não existe algo de cruel, selvagem e violento em todas as festas?". Da mesma forma que existe, poderíamos juntar, algo de festivo em cada revolução.



Claro que as autoridades tinham começado a ver alguma coisa de perigoso, e até de potencialmente insubordinado, nas festividades populares, muito antes da "era da revolução" do século XVIII. Desde o século XVI que as autoridades de toda a Europa haviam feito campanhas mais ou menos sistemáticas para suprimir todas as formas de diversão das classes baixas, geralmente em nome da moral. Desportos como o futebol, que em épocas medievais envolviam centenas de jogadores de cada vez, foram proibidos, a embriaguez em público penalizada, e foi até vedado o uso de máscaras. Foi proibida a celebração de Carnavais tradicionais, a dança foi atacada como algo de lascivo. "Entre os séculos XVII e XX… apareceram, literalmente, milhares de leis que procuraram eliminar os carnavais e as festividades populares na vida européia… por toda a parte, contra os periódicos reaparecimentos das festividades locais e os seus ocasionais reveses, uma ordem ritual fundamental da cultura ocidental foi posta em xeque: as suas festas, a sua violência, as suas procissões, os seus feriados, os seus velórios, o espetáculo desordenado e o clamor irreverente, foram sujeitos à vigilância e ao controle repressivos".

Subjacente a esta repressão encontrava-se a transição fundamental para o capitalismo industrial. O velho calendário de festividades pode ser encaixado nos ritmos sazonais da vida agrícola, mas não tinha cabimento num mundo regido, pela primeira vez, pelo ponteiro do relógio. No novo esquema burguês das coisas, exemplificado pelo protestantismo emergente, o tempo era dinheiro, e a austeridade uma virtude cardeal. Comerciantes e criados, banqueiros e tecelões, deviam, todos por igual, esquecer a gratificação imediata ao cabo de uma vida de trabalho disciplinado e reservar o seu único dia de descanso, o domingo, para atividades não mais estridentes do que o canto de hinos religiosos. Foi este projeto de séculos de repressão, observou o historiador Norbert Elias, que conduziu à concepção freudiana de que a "civilização" apenas poderia ser conseguida renunciando à espontaneidade e ao sentido do festivo. Por outras palavras, ninguém mais poderá olhar os outros como uma possível fonte de prazer e de energia, convertendo-se as pessoas em competidores, ou o que é pior, em censores, vigilantes ante qualquer sinal de deslize moral. O "eu" era agora concebido como uma espécie de núcleo fechado, isolado de todos os outros eus, para o qual a delirante perda do eu produzida pela festa ou pela revolta festiva apenas podiam parecer aterradores, uma espécie de morte.

Desde logo, o ethos puritano das classes médias emergentes pôs de parte a revolução, a menos puritana de todas as empresas. As revoltas aparentemente espontâneas, festivas, do campesinato e dos pobres da cidade, horrorizaram os líderes intelectuais da Revolução Francesa, os quais empreenderam, como antes deles os padres haviam procurado fazer, a supressão dos carnavais e de todas as outras "formas indecentes familiares do antigo regime". Os chefes revolucionários procuraram trocar "o festival mal planificado, as festas secretas, noturnas, o divertimento ruidoso, o folguedo, a mescla de grupos de diferentes idades, classes e sexos, a orgia" por espetáculos amáveis, dedicados, por exemplo, à "Razão". Com Lênin, a orientação revolucionária desviou-se completamente da antiga tradição da festividade popular. De fato, este escreveu até acerca da sua gratidão em relação aos capitalistas por estes haverem disciplinado as classes trabalhadoras numa espécie de "exército", uma vez que a revolução moderna, marxista-leninista, iria ser uma espécie de guerra. O principal ator desta cruel nova versão da mudança social era o "revolucionário profissional", e a sua paixão exclusiva, fria e ascética, pelo poder.

Em lugar dos prazeres coletivos suprimidos do mundo medieval, as culturas do século XX ofereciam duas alternativas: o prazer privatizado do consumo individual, e o prazer substituto oferecido pelos espetáculos de massas. A idéia de que a satisfação mais profunda poderia ser achada no cenário exclusivo do privado, entre os membros próximos da família, apareceu no século XIX, quando a tradição do Carnaval tinha sido já praticamente aniquilada. Um pastor britânico da época predicava que a felicidade "não consiste em grinaldas e palanques, tambores e trombetas, ou em andar a fazer cabriolas à volta de uma maypole. A felicidade é uma coisa do lar. É algo de tonalidade grave e séria; e que será tanto mais profunda e verdadeira quanto mais limpa estiver do pandemônio da mera diversão".

De forma similar, as festas do Natal, que em tempos havia sido celebrado na Inglaterra com bailes públicos, festejos, bebedeiras e disfarces, passaram para o interior dos lares, para ser enganosamente domesticadas como "assuntos domésticos." Com a emergência de uma cultura do consumo de massas nos anos vinte, o prazer privado – de comidas, de férias e de "entretenimento" – substituiu decisivamente as festas compartilhadas e a excitação coletivamente engendrada das festividades tradicionais. O amor sexual converteu-se numa obsessão pública e em tema de cada canção popular e de cada filme porque era a única ocasião que excluía a perda do eu, tal como antes se passava com a multidão festiva.

Ao mesmo tempo, as festividades participativas e os esportes cederam o seu lugar aos espetáculos de massas: festivais, feiras e carnavais foram substituídos por desfiles oficiais, desempenhando a multidão urbana o papel exclusivo de público. Os esportes populares converteram-se em esportes de espectadores, que não requeriam esforço físico algum e que não ofereciam nenhuma satisfação física. Mas os maiores espetáculos do século XX foram de temática militar: desfiles do Primeiro de Maio, manifestações de Nuremberg e, mais recentemente, a guerra aérea televisionada. O nacionalismo, tal como as inocentes associações esportivas de adeptos da mesma equipe, oferece a nossa única experiência, habitualmente aceitável, de imersão em alguma entidade humana mais ampla, através do papel do patriota que, tal como o adepto, apenas precisa gritar urras. A participação comprometida – o baile, a pantomina, o escarnecer das autoridades – foram substituídos pelo "espectador passivo, que olha em silêncio e assombrado".

A mesma passividade estende-se agora ao âmbito da política, a qual, tal como é muitas vezes notado, se converteu num "esporte de espectadores", provavelmente não muito apaixonante para a maioria das pessoas. Até mesmo o cidadão mais consciente vê o seu papel reduzido a "consumir" as notícias políticas, quase sempre em solidão, e a depositar ocasionalmente o seu voto. E se a eliminação dos divertimentos participativos foi lamentável, o fim da política participativa é verdadeiramente trágico. Aquilo que conhecemos como o processo democrático apenas existe por causa dos movimentos revolucionários dos últimos 200 anos, os quais foram, por sua vez, beber numa tradição muito mais antiga, "pré-política", da festividade das classes baixas (e das mulheres). Não perdemos apenas uma antiga forma de prazer, mas o espírito da criatividade coletiva que deu origem à democracia.

Há ainda leninistas entre nós – se bem existam hoje mais hipóteses destes serem conservadores do que de serem comunistas – que argumentam que é melhor deixar a política para uma elite especializada, longe das paixões da gente comum. Para ultrapassar esta situação, no sentido de uma genuína renovação democrática, precisamos de movimentos sociais que contemplem, e ativamente sejam capazes de gerar, a excitação coletiva de uma grande quantidade de pessoas. Os ativistas sindicais e comunitários mais experimentados entendem isto perfeitamente, procurando construir experiências de solidariedade e dando poder, no contexto das suas atividades, aqueles que não o têm. Também a arte tem um papel a desempenhar no reavivar da capacidade de ligação festiva com os outros, e no renascer da capacidade criativa latente nessas atitudes, entretanto perdidas.



Mas a paixão e a arte não podem ser reduzidas a meros instrumentos para se alcançarem metas políticas. Até gente desesperadamente pobre como os camponeses e os trabalhadores franceses dos séculos XVII e XIX, ou os camponeses maias dos nossos dias, lutou por muito mais do que a simples reparação de dissabores econômicos. O lema dos trabalhadores fabris americanos nos princípios do século XX era "pão e rosas", abarcando na sua luta tanto os meios de vida como as experiências transcendentes que dão algum sentido à sua vida. Tal como escreveu Lefebvre nas vésperas de 1968, a "última cláusula do plano revolucionário é a Festa, redescoberta e ampliada pela superação do conflito entre a vida quotidiana e a festividade"... O que significa dizer que o prazer coletivo é não apenas um efeito colateral dos movimentos políticos igualitários, mas, em última instancia, deve também ser a sua meta: institucionalizar a festa, com a sua desordenada criatividade e a sua euforia coletiva, como um princípio da vida cotidiana.

* Mastros de madeira, erguidas ao ar livre, enfeitadas com flores e tiras de pano, em redor das quais, no início da Primavera, comunidades pré-cristãs de algumas regiões da Europa dançavam de forma ritual. (N. do T.).


Barbara Ehrenreich

Tradução de Rui Bebiano

Janeiro de 2001.

Artigo originalmente publicado, em inglês, na Z magazine (www.zmag.org).

Fonte : Revista NON! (www.zonanon.com).

Mensagens nos Balões

André Forastieri

Domenico de Mais diz que fracassou na vida. Porque trabalha nove meses por ano e passa três tomando vinho, lendo e conversando. Seu sonho é que a proporção fosse contrária.

“Tudo que você precisa para mistificar o mundo é dinheiro e imaginação.”
“Tranqüilamente. Mas isso faria parar o comichão? Ou seria só um outro projeto grande e excitante para fazer você ignorar o que realmente quer? Você quer ser livre como nós? O que você sentiria se fosse livre?” (The invisibles, nº 22, fevereiro de 1999)

Leio quadrinhos obsessivamente desde os quatro anos de idade. Universitário, comi pão com ovo e ketchup mil vezes, poupando para bancar meus gibis gringos. Não era questão de coleção: eu queria só ler o máximo de gibis mesmo. Até os 23 anos não conhecia ninguém que gostasse de quadrinhos como eu. Quando descobri que outras pessoas sabiam quem eram Hal Foster, Gil Kane e os Desafiadores do Desconhecido, caí pra trás. Quatro meses depois tinha uma coluna semanal sobre quadrinhos na Folha de S. Paulo. Leio de tudo um pouco, mas gosto mesmo é de gibi americano bem careta mesmo, como Batman, X-men, Hellblazer. Sou mais fiel a roteiristas que a desenhistas. Não compro edições raras ou assinadas e mesmo assim continuo gastando mais do que devia com quadrinhos. Hoje, quase nenhum moleque lê quadrinhos. A relação “preço-diversão por minuto” é muito alta. Pelo preço de um gibizinho merreca que se lê num tapa dá pra ficar duas horas num cinema ou alugar um videogame sensacional por dois dias.
Vou ler gibi até morrer ou até eles acabarem, o que acontecer primeiro. Tenho paixão. Mais: descubro mensagens secretas nos balões, codificadas só pra mim e, quem sabe, outros fanáticos. A verdade é está lá dentro. Descobri uma boa definição para minha relação com HQ outro dia: “Aficionado é quem supergasta em uma categoria e subgasta em outras”. Quando abro o gibi, sinto o contrário do que quando abro um jornal. O jornal, a Veja, a CNN – é tudo mentira e mistificação. No mundo dos gibis, os heróis voam, soltam raios pelos olhos e movem planetas. O mundo das notícias é bem mais irreal: Itamar destruiu o real, o crime caiu, a bolsa subiu, foi tudo por uma boa causa, vai passar. Aquela história de que o jornalismo se faz de más notícias (porque as boas notícias são a publicidade e é preciso um equilíbrio crível) foi para o saco. O mundo das notícias me irrita porque onde eu vivo a cerveja nunca é tão gelada quanto no comercial; a celulite resiste ao creminho; a dor dói; o orgasmo acaba; o herói morre no final.
Hoje o símbolo é mais importante que a realidade. Repetido um zilhão de vezes, sobrepuja o real. E quanto mais irreal mais poderoso e importante. Um círculo vicioso e pornográfico.
Isso é mágica: atuar nos símbolos para fazer os outros verem o que você quiser e fazerem o que você disser. Uns fazem desenhando super-heróis.
Outros fazem dando entrevistas, como Domenico de Mais no programa Roda Viva.
O sociólogo italiano disse que os últimos anos foram marcados pela guerra dos pobres contra os ricos. Agora é a vez dos ricos contra os pobres. Sem culpa nem constrangimento. O partido do possível e do provável tomou a ofensiva contra o partido da imaginação.
Nessa guerra Fernando Henrique Cardoso é coronel. Governa como o regime militar que combatia, as mesmas saraivadas de medidas provisórias e os mesmos objetivos. As críticas que recebe por inoperância e indecisão não procedem. Sua desconversa preguiçosa ofusca uma guerra de extermínio.
Fez mais em quatro anos pelo seu lado que os milicos em trinta de ditadura.
Numa guerra contra os trabalhadores, a primeira medida é tornar o trabalho desimportante, desorganizado, barato e chato. A segunda é impedir que os pobres tenham acesso às armas que importam: dinheiro, imaginação de ponta e um sentido do impossível.
A revolta dos pobres se dava no território do trabalho. Os ricos escolheram outro campo de batalha: o lazer. Brilhante. Você acreditaria que quase 50 por cento do PIB americano é ligado de alguma forma aos segmentos de entretenimento e recreação? O número é do futurista profissional e guru do marketing Waltts Wacker, que ilumina a questão em The 500-year Delta: What Comes After What Comes Next, editado pela Harper Business nos Estados Unidos.
Whacker propõe o seguinte exercício. Imagine a casa de uma família de classe média em 1950. Agora imagine as casas de uma família de classe média em diferentes países: Brasil, EUA, Japão, Filipinas, Rússia.
Agora imagine essas casas e essas famílias hoje. Percebeu? Você imaginou todos vestindo roupas parecidas. Imaginou televisão, geladeira, microondas, a garota de batom, o moleque de boné. Hoje há uma uniformidade material internacional, uma uniformidade de estilos de vida (e, mais importante, uniformidade de ambições por causa da uniformidade de símbolos). Japoneses, sudaneses, brasileiros ajoelhamos na frente das mesmas imagens.
O feitiche número um, claro, é grana – não dinheiro de verdade para gastar de verdade, - a idéia de grana. Um símbolo da liberdade além das responsabilidades, um desejo infantil de proteção sem consciência.
Essa grana virtual de comercial de televisão não traz a felicidade, manda buscar na frente dos vizinhos. A idéia é justamente essa. Mas só vale à pena ter um Rolex e uma BMW se ninguém no bairro tiver.
Wacker traduz: em um período de uniformidade material, as únicas coisas que realmente têm valor são as diversidades intelectual e espiritual; essas diversidades devem ser objetificadas; quando muitos têm a mesma coisa, a escassez determina o valor. Os atributos, os objetos e interesses que só você tem criam sua identidade: “Em um período de mudanças e caos, se tornar um aficionado é uma maneira de descobrir um foco, de alcançar um equilíbrio”.
Faz sentido e banca minha velha tese da época da revista Herói: todo mundo é nerd. Todo mundo tem obsessões. Todo mundo é colecionador. E todo colecionador tem certeza de que é especial. O que ficou bem mais claro agora é o porquê. E a chave de tudo: é o que você faz nas horas vagas que te define, não o que você faz no trabalho (até porque o trabalho não faz sentido, não pode fazer, sua desvalorização é a arma número um da nova guerra).
É na sua hora de lazer que você imagina quem você é. O que faz de você o que é, é você recitar o Santos de 1962, jogar truco, escrever cartas para colegas de colegial, juntar caixas de fósforos, restaurar fotos antigas, caçar LPs de punk rock em vinil, ler todo o Proust, colecionar bookmarks sobre UFOs, ver todos os filmes de Rocco Siffredi e do Jackie Chan, as manias estranhas, as taras cotidianas.
Em que você gasta mais tempo e dinheiro que “devia” – e ninguém consegue entender o porque? Que sensação, que significado você tira disso? Como fazer isso te liberta? O que isso diz sobre você?
Domenico de Masi diz que fracassou na vida. Porque trabalha nove meses no ano e passa três na costa amalfitana, tomando vinho, lendo e conversando com os amigos (o que isso diz sobre ele?). Seu sonho é que a proporção fosse contrária. Quer dizer: o cara que é um visionário do trabalho acha sacanagem não folgar nove meses por ano. Entendeu?
Está certíssimo ele. Está na hora de descobrir o que é ser livre e mandar as regras pra puta que pariu. Não adianta brigar pra Ford te readmitir, para a escola te preparar, para o mercado te aceitar – nada virá de bom no domínio do possível e do provável. Como diz o cara lá de cima, tudo o que você precisa é de dinheiro e imaginação. O problema é que na nova guerra todo dinheiro está de um lado; e oposição está com pouca imaginação. A questão é: se você ganhar dinheiro, de que lado da guerra irá combater? E eu?
Leio gibi como quem consulta um oráculo bebendo cerveja. The invisibles 22: “Tiramos papeizinhos de dentro de um chapéu. Ganhamos novas personalidades e novos papéis. As regras mudaram de repente. É fácil assim ser uma nova pessoa. O que você quer ser de verdade? ... Você tem um lar, negócios, responsabilidades... por isso você não pode mudar? Largue tudo isso, delegue. Depois que você começa fica fácil. Tá, não é fácil mudar o que sou, mas é fácil mudar o que eu faço – é quase a mesma coisa...”.
“O que acontece depois? Ora, um passarinho começa a cantar e você lembra da sua casa e das suas obrigações e como não dá para escapar disso tudo e como parece difícil mudar qualquer parte de sua vida.”
“E então tudo muda como sempre muda.”

André Forastieri é diretor da Conrad Editora.
Caros Amigos, nº 23, fev 1999.

Gigantes


Na terra de gigantes
todos se mantêm com a cabeça nas nuvens

Por mais intenso que seja o calor da terra
mais insuportável que pareça o trânsito de seres em seus veículos
de todos os dias as mesmas manhãs

Tudo para o gigante parece pequeno
Todas essas pequenas enfermidades
Esses pequenos ridículos

Os gigantes se alimentam
não de comida,
mas sim
de homens
De idéias de homens
De boas idéias de homens

É isso que faz serem
tão
Grandes

Além de se alimentarem de si mesmos
quando estão em seu quarto escuro
longe de tudo
e de todos
entre as estrelas
de seu universo

O gigante
acostumado a tão elevadas visões
quando enxerga a ponta de seus pés
Ri como se fosse ontem
das vezes que não viu crescer

Como pode estar tão longe?

Seus pés
que um dia foram
tão fracos
e delicados
hoje suportam o peso de uma existência
de uma escola

No começo quase não queriam
mas hoje topam qualquer caminho

Todo chão é puro de histórias

Se cansou daqueles horizontes

Para o gigante é fácil
“um passo a frente
e não está mais no mesmo lugar”
Suas pernas fazem curtas a distância
pois seus pensamentos fazem luxo
do tempo que acumula

e de lá de outra óptica...
só de lá para se dizer


Leandro Monteiro
meu irmão

www.orbitare.tumblr.com



img_mel kadel_fecalface

,,eu vou deletar a parte d mi que cabe ao mundo:
acordos que eu nao debati, contratos de boa educação com os maus educados ,maos lavadas, axilas cheirosas, roupas bem passadas, risadas comportadas , sorrisos sem graça, moda hierárquica , horizontes descabaçados, o virgem e mais gostoso ,

o natural é meu presente pra voce gostar de mim
pés descalços na sua percepção
vou caminhar por sua adimiraçao e quando atravessar a nado o poço da superficialidade
encontrarei o tesouro que há guardado em ti onde nem voce mesmo pode tocar,, (sic).


Leandro Monteiro

img: eduardo recife

Canção óbvia

Escolhi a sombra desta árvore para
repousar do muito que farei,
enquanto esperarei por ti.
Quem espera na pura espera
vive um tempo de espera vã.
Por isto, enquanto te espero
trabalharei os campos
e conversarei com os homens.
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
minhas mão ficarão calejadas;
meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
meus ouvidos ouvirão mais;
meus olhos verão o que antes não viam;
enquanto esperarei por ti.
Não te esperarei na pura espera
porque o meu tempo de espera é um
tempo de quefazer.
Desconfiarei daqueles que virão dizer-me,
em voz baixa e precavidos:
É perigoso agir
É perigoso falar
É perigosos andar
É perigoso esperar na forma como esperas,
porque êsses recusam a alegria da tua chegada.
Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,
com palavras fáceis, que já chegaste,
porque esses, ao anunciar-te ingenuamente,
antes te denunciam.
Estarei preparando a tua chegada
como o jardineiro prepara o jardim
para a rosa que se abrirá na primavera

Paulo Freire, março de 1971

O banquete

“Que comunicadores seremos? Que comunicadores queremos formar na Universidade Pública?
Que alerta receberão para que contribuam à cidadania, para que possam exercer uma formação direcionada à ação político-cultural?
E não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que a agenda social da Faculdade de Comunicação pode ser estabelecida sem que chamemos ao debate os segmentos de nossa cercania societária. Não fazer isso seria elaborar uma ideologia e adesivá-la à boca de todos os pais e filhos que crescem e morrem à margem da Academia.
O que as comunidades pensam da Universidade Pública, que não é apenas nossa?
Do que precisam?
Só elas mesmas podem saber. E que amparo e que possibilidades, dentro da Universidade Pública pode-se dar, por exemplo, a um artista do subúrbio, como o rapper?
Que respaldo pode ser dado à nossa cultura indígena frente uma Indústria Cultural “rolo-compressora”?
O que, em contrapartida, devemos nos perguntar: onde mais podemos formular políticas-culturais que administrem essas questões senão no âmbito da Academia, nas Escolas de Comunicação, especificamente?
Continuaremos a lançar nossos recém-formados às agências de emprego, em busca de um mercado que em nada tem a ver com a universidade, que em nada se preocupa com a identidade cultural da comunicação e das comunidades, sem ao menos termos tentado investir na construção de um novo mercado, alicerçado sobre bases mais democráticas?
Qual a síntese histórica que faremos e, melhor, de que forma a faremos?
Ou seremos, para sempre, um fim em nós mesmos, eternos críticos estetas, como um oco verso parnasiano?"


Rafael Lefcadito

semeador








"Poetizar o urbano As ruas e as bobagens do nosso daydream diário se enriquecem Vê-se q elas não são bobagens nem trouvailles sem consequência São o pé calçado pronto para o delirium ambulatorium renovado a cada dia”

Helio Oiticica

De Outros Espaços

Como sabemos, a história é a obsessão do século dezanove. Da temática do desenvolvimento e da suspensão, da crise e do ciclo, o tema da pesada herança dos mortos e da ameaça da glaciação do mundo devido à incessante acumulação do passado, depreende-se que o século dezanove encontrou a fonte dos seus recursos mitológicos no segundo princípio da termodinâmica. A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Julgo que ocupamos um tempo no qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma vivência que se vai enriquecendo com o tempo. Poderíamos dizer, talvez, que os conflitos ideológicos que se traduzem nas polémicas contemporâneas se opõem aos pios descendentes do tempo e aos estabelecidos habitantes do espaço. O estruturalismo, ou pelo menos aquilo que é agrupado sob este nome demasiadamente vago, não é mais do que um esforço para estabelecer, entre aqueles elementos que poderiam ter sido associados num eixo temporal, um conjunto de relações que os faz aparecer justapostos, contrapostos, implícitos uns pelos outros – em suma, o que faz aparecer esses elementos com uma determinada configuração. Na verdade, o estruturalismo não implica uma negação do tempo; mas acarreta uma certa maneira de lidar com aquilo a que chamamos tempo e com aquilo a que chamamos história.

É porém necessário notar que o espaço, o que nos surge como horizonte das preocupações, teorias e sistemas, não é uma inovação; o espaço em si tem uma história na experiência Ocidental e é impossível esquecer o nó profundo do tempo com o espaço. Podemos dizer, de uma forma muito simplista de traçar a história do espaço, que durante a Idade Média existia um conjunto hierárquico de lugares: numa primeira instância, os lugares imediatamente associados à vida real do homem, com as dicotomias entre lugares sagrados e lugares profanos, lugares protegidos e lugares expostos, lugares urbanos e lugares rurais; nas teorias cosmológicas, existiam os lugares supracelestiais, opondo-se aos celestes e estes, aos terrestres. E ainda havia também lugares onde certas coisas eram colocadas porque tinham sido deslocadas, por sua vez, de uma forma violenta, e, pelo contrário, lugares onde as coisas encontravam as suas base e estabilidade naturais. Estas oposições e intersecções de lugares formavam uma hierarquia acabada e é o que nós podemos indicar, ainda que muito imperfeitamente, como espaço medieval: o espaço em que cada coisa é colocada no seu sítio específico, o espaço da disposição.

Este espaço de disposição, de fixidez, foi aberto por Galileu. O escândalo profundo suscitado pelas suas investigações não foi o facto de ter descoberto, ou melhor, redescoberto que a Terra girava à volta do Sol, mas na constituição do conceito de infinito e, o que é implícito, de um espaço infinitamente aberto. Num espaço desses, os lugares da Idade Média acabam por se dissolver; um lugar de uma coisa não passava afinal de apenas um ponto do seu movimento, assim como a estabilidade dessa coisa não passava afinal da infinita desaceleração do seu movimento. Por outras palavras, Galileu e todo o século dezassete foram os primeiros de todo um movimento que substituiu a localização pela extensão.

Hoje o sítio substitui a extensão que, por sua vez, tinha substituído a disposição. O sítio define-se por relações de proximidade entre certos pontos e elementos; poderemos descrever formalmente essas relações como séries ou grelhas. Além disso, a importância do sítio como uma problemática no trabalho técnico contemporâneo é sobejamente conhecida: o armazenamento de dados ou de resultados intermédios de um cálculo numa memória; a circulação de elementos distintos com um output aleatório (exemplos simples: o tráfico automobilístico ou os sons da linha de telefone); a identificação de elementos assinalados e codificados que fazem parte de um todo, construído aleatoriamente ou segundo classificações, sejam elas simples ou múltiplas.

De uma forma ainda mais concreta, o problema da disposição das coisas surge à Humanidade na forma da demografia. Este problema do sítio humano ou do lugar vivo não se reduz apenas a saber se existirá ou não espaço para todas as pessoas no mundo – que é decerto importante – mas também saber que relações de propinquidade, que tipos de armazenamento, circulação, marcação e classificação de elementos humanos devem ser adoptadas em determinadas situações para atingir determinados fins. A nossa época é tal que os sítios se tornam, para nós, uma forma de relação entre vários sítios.

Em todos os casos, acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo. O tempo aparece-nos como apenas uma das várias operações distributivas que são possíveis entre os elementos que estão espalhados pelo espaço.

Agora, apesar de toda a técnica desenvolvida de apropriação do espaço, apesar de toda uma rede de relações entre saberes que nos ajuda a delimitá-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo não foi ainda totalmente dessacralizado (pelo que parece, uma atitude aparentemente diferente da que foi tomada perante o tempo, arrancado da esfera do sagrado no século dezanove). Na verdade, uma certa dessacralização do espaço ocorreu (sublinhada pela obra de Galileu), mas ainda não atingimos o ponto óptimo dessa dessacralização. A nossa vida ainda se regra por certas dicotomias inultrapassáveis, invioláveis, dicotomias as quais as nossas instituições ainda não tiveram coragem de dissipar. Estas dicotomias são oposições que tomamos como dadas à partida: por exemplo, entre espaço público e espaço privado, entre espaço familiar e espaço social, entre espaço cultural e espaço útil, entre espaço de lazer e espaço de trabalho. Todas estas oposições se mantêm devido à presença oculta do sagrado.

A obra monumental de Bachelard e as descrições dos fenomenologistas demonstraram-nos que não habitamos um espaço homogéneo e vazio mas, bem pelo contrário, um espaço que está totalmente imerso em quantidades e é ao mesmo tempo fantasmático. O espaço da nossa percepção primária, o espaço dos nossos sonhos e o espaço das nossas paixões encerram em si próprios qualidades à primeira vista intrínsecas: há um espaço luminoso, etéreo e transparente, ou um espaço tenebroso, imperfeito e que inibe os movimentos; um espaço do cimo, dos píncaros, e um espaço do baixo, da lama; há ainda um espaço flutuante como água espargindo e um espaço que é fixo como uma pedra, congelado como cristal. No entanto, todas estas análises, ainda que fundamentais para uma certa reflexão do nosso tempo, dizem respeito, logo à partida, ao espaço interno. Eu preferiria debruçar-me sobre o espaço externo.

O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão das nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também, em si próprio, um espaço heterogéneo. Por outras palavras, não vivemos numa espécie de vácuo, no qual se colocam indivíduos e coisas, num vácuo que pode ser preenchido por vários tons de luz. Vivemos, sim, numa série de relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impôr.

É evidente que podemos tentar descrever estes diferentes sítios apenas pela série de relações que definem cada um destes determinados sítios. Por exemplo, descrevendo a série de relações que definem os sítios de transporte, ruas, comboios (um comboio é uma amálgama extraordinária de relações porque é algo que atravessamos, é também algo que nos leva de um ponto a outro, e por fim é também algo que passa por nós). Poderíamos ainda descrever, através dos aglomerados de relações que permitem a sua definição, os sítios de relaxe temporário – cafés, cinemas, praias. Da mesma forma, poderíamos descrever, através da sua rede de relações, os sítios fechados ou semi-fechados de descanso – a casa, o quarto, a cama, etc.

Mas, de todos estes sítios, interessam-me mais os que se relacionam com todos os outros sítios, de uma forma que neutraliza, secunda, ou inverte a rede de relações por si designadas, espelhadas e reflectidas. Espaços que se encadeiam uns nos outros, mas entretanto contradizem todos os outros. São de dois tipos principais.

Em primeiro lugar, existem as utopias. As utopias são sítios sem lugar real. São sítios que têm uma relação analógica directa ou invertida com o espaço real da Sociedade. Apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. Seja como for, as utopias são espaços fundamentalmente irreais.

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles reflectem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. Julgo que entre as utopias e este tipo de sítios, estas heterotopias, poderá existir uma espécie de experiência de união ou mistura análoga à do espelho. O espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade, e exerce um tipo de contra-acção à posição que eu ocupo. Do sítio em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no sítio onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá.

Sendo assim as heterotopias, como é que podem ser descritas e que sentido assumem elas? Poderemos apelar para uma descrição sistemática - não diria uma «ciência», pois esse é um termo demasiado em voga nos dias de hoje - uma descrição que numa dada sociedade tomará como objecto o estudo, a análise, a descrição e a «leitura» (como alguns gostariam de dizer) destes espaços diferentes, destes lugares-outros. Sendo uma contestação do espaço que vivemos simultaneamente mítica e real, esta descrição poderá ser intitulada de heterotopologia. O seu primeiro princípio é o de que não há nenhuma cultura no mundo que não deixe de criar as suas heterotopias. É uma constante de qualquer e todo o grupo humano. Mas é evidente que as heterotopias assumem variadíssimas formas e, provavelmente, não se poderá encontrar uma única forma universal de heterotopia. Poderemos, no entanto, classificá-las em duas categorias.

Nas ditas sociedades primitivas, há um tipo de heterotopia que eu chamaria de heterotopia de crise, id est, lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos, reservados a indivíduos que estão, em relação à sociedade e ao ambiente humano que ocupam, numa situação de crise: adolescentes, mulheres menstruadas ou grávidas, idosos, etc. Na nossa sociedade, estas heterotopias de crise têm desaparecido progressivamente, apesar de ainda se puderem encontrar algumas reminiscências dos mesmos. Por exemplo, o colégio interno, na sua forma novecentista, ou o serviço militar para os jovens rapazes, são algo que desempenham esse papel, visto que as primeiras manifestações de virilidade sexual devem ocorrer "algures" que não o lar ou lugar de origem. E até meados do século vinte, existia para as raparigas a «viagem de lua-de-mel», que é uma tradição de temática antiga. A desfloração das jovens raparigas deveria ocorrer "nenhures" e, quando isso acontecia no comboio ou no hotel da «lua-de-mel», acontecia de facto nesse lugar de "nenhures", nessa heterotopia sem limites geográficos.

Mas estas heterotopias de crise têm desaparecido dos nossos dias e sido substituídas, parece-me, pelo que poderíamos chamar heterotopias de desvio: aquelas nas quais os indivíduos, cujos comportamentos são desviantes em relação às norma ou média necessárias, são colocados. Exemplos disto serão as casas de repouso ou os hospitais psiquiátricos, e, claro está, as prisões. Talvez devêssemos acrescentar as casas de terceira idade, que se encontram numa fronteira diáfana entre a heterotopia de crise e heterotopia de desvio: afinal de contas, a terceira idade é uma crise mas também um desvio, visto que na nossa sociedade, sendo o lazer a regra, a ociosidade é uma espécie de desvio.

O segundo princípio desta descrição das heterotopias é que uma sociedade, à medida que a sua história se desenvolve, pode atribuir a uma heterotopia existente uma função diversa da original; cada heterotopia tem uma função determinada e precisa na sua sociedade, e essa mesma heterotopia pode, de acordo sincrónico com a cultura em que se insere, assumir uma outra função qualquer.

Exemplificarei com a estranha heterotopia que é o cemitério. Um cemitério é, em absoluto, um lugar diverso dos espaços culturais comuns. É, porém, um espaço intimamente relacionado com todos os outros sítios da cidade ou estado ou sociedade, etc., uma vez que cada indivíduo e cada família tem familiares no cemitério. Na cultura ocidental o cemitério sempre existiu, apesar de ter atravessado mudanças radicais. Até ao fim do século dezoito, o cemitério encontrava-se no centro da cidade, geminado com a igreja. Existia uma hierarquização dos possíveis túmulos: em primeiro lugar, existia a casa mortuária na qual os corpos perdiam os seus traços particulares, depois, alguns túmulos individuais e, no fim, os que se encontravam dentro da igreja. Estes últimos dividiam-se em dois grupos: as simples lápides inscritas e os mausoléus com estátuas. Este cemitério, que se abrigava no espaço sagrado da igreja, tomou uma direcção bastante diferente nas civilizações modernas. Curiosamente, numa época em que essas civilizações se assumem como - e digo-o de uma forma franca - «ateístas», a cultura ocidental desenvolveu aquilo a que se chamará culto dos mortos.

Vejamos: era natural que, num tempo em que se cria realmente na ressurreição dos corpos e na imortalidade da alma, não se preocupassem em demasia com os despojos do cadáver. Contrariamente, no momento em que já não se crê com tanta segurança que se tem uma alma ou que o corpo alguma vez recupere a vida, é talvez importante assegurar maior atenção ao corpo morto, que é, em última instância, o único traço da nossa existência, quer no mundo quer na linguagem. Em todos os casos, é a partir dos inícios do século dezanove que todos começam a ganhar o direito de ter a sua própria caixinha para a sua própria decadência pessoal. Entretanto, e num movimento oposto, é também a partir dos inícios do século dezanove que os cemitérios começam a ser construídos nas linhas exteriores das cidades. Correlativamente à individualização da morte e à apropriação burguesa do cemitério, emerge uma obsessão pela morte como uma «doença». Os mortos trazem supostamente doenças, e é a proximidade, a presença dos mortos ao lado da igreja, ao lado das casas, quase no meio das ruas, é esta proximidade que propaga a própria morte. Este tema maior da doença espalhada pelo contágio nos cemitérios manteve-se até ao fim do século dezoito, quando, e ao longo do século seguinte, os cemitérios foram deslocados em direcção aos subúrbios. Os cemitérios tornaram-se assim, não já no imortal e sagrado coração da cidade, mas na «cidade-outra», em que cada família possui o seu tenebroso cantinho de descanso.

Terceiro princípio. A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece num teatro, no rectângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um atrás do outro, um estranho ao outro; assim é o que acontece no cinema, essa divisão rectangular tão peculiar, no fundo da qual, num ecrã bidimensional se podem ver projecções de espaços tridimensionais. Mas talvez o exemplo mais antigo deste tipo de heterotopias, destes sítios contraditórios, seja o do jardim. Devemos ter em conta que, no Oriente, o jardim era uma impressionante criação de tradições milenares, e que assumia significados profundos e sobrepostos. Na tradição persa, o jardim era um espaço sagrado que reiterava nos seus quatro cantos os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado no centro, um umbigo do mundo (ocupado pela fonte de água . Toda a vegetação deveria encontrar-se ali reunida, formando como que um microcosmo. Relativamente aos tapetes persas, estes eram nada mais nada menos do que reproduções dos jardins (o jardim é um tapete no qual todo o mundo atinge a sua perfeição simbólica; e o tapete um jardim que se pode deslocar no espaço). O jardim é a mais pequena parcela do mundo e é também a totalidade do mundo; tem sido uma espécie de heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade (os nossos modernos jardins zoológicos partem desta matriz).

Quarto princípio. Na maior parte dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas do tempo - estão intimamente ligadas àquilo que chamarei, a bem da simetria, heterocronias. O auge funcional de uma dada heterotopia só é alcançado aquando uma certa ruptura do homem com a sua tradição temporal. Assim, e ainda com o exemplo do cemitério, verificamos que esta é uma heterotopia particularmente significativa; repare-se: é uma heterotopia que para o indivíduo tem o seu início na peculiar heterocronia que é a perda da vida, e na entrada dessa quasi-eternidade cujo permanente fado é a dissolução, o desaparecimento até.

De modo geral, na nossa sociedade as heterocronias e heterotopias são distribuídas e estruturadas de uma forma relativamente complexa. Em primeiro lugar, surgem as heterotopias acumulativas do tempo, como os museus e as bibliotecas. Estes tornaram-se heterotopias em que o tempo não pára de se acumular e empilhar-se sobre si próprio. No século dezassete, porém, um museu e uma biblioteca traduziam uma expressiva escolha pessoal. Por contraste, a ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos, a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projecto de organizar desta forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo este conceito pertence à nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias típicas da cultura ocidental do século dezanove.

Do outro lado do espectro estão as heterotopias que estão associadas ao tempo na sua vertente mais fugaz, transitória, passageira. Refiro-me ao que assume o modo do festival. Estas heterotopias não estão orientadas para o eterno; bem pelo contrário, são de uma absoluta cronicidade, são temporais. É o que encontramos nas feiras e nos circos, sítios vazios colocados nos limites das cidades que, duas vezes por ano, pululam com barraquinhas, montras, objectos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpente, pessoas que lêem o futuro nas mãos, entre muitos outros. E um novo tipo de heterotopia temporal surgiu ainda há pouco tempo: as aldeias de férias. Como aquelas aldeias polinésias que oferecem um pacote completo de três semanas de eterna e primitiva nudez ao citadino. Repare-se que, no fundo, esta última reúne as duas formas de heterotopias de que acabei de falar, a heterotopia de festival e a heterotopia acumulativa: as cabanas de Djerba são em alguns aspectos aparentadas com os museus e as bibliotecas. A redescoberta da vida na Polinésia leva à abolição do tempo; mas é ao mesmo tempo uma experiência em que se redescobre o próprio tempo: é como se toda a história da humanidade pudesse rever as suas origens de uma maneira imediata, experienciada.

Quinto princípio. As heterotopias pressupõem um sistema de abertura e encerramento que as torna tanto herméticas como penetráveis. Geralmente, uma heterotopia não é acessível tal qual um lugar público. A entrada pode ser ou compulsória, o que é exemplificável pelas prisões e casernas, ou através de um rol de rituais e purificações, em que o indivíduo tem de obter permissão e repetir certos gestos. Além disso, há heterotopias que são exclusivamente dedicadas a estas actividades de purificação, ritos que são parcialmente religiosos e parcialmente higiénicos como nos hammans dos muçulmanos, ou ritos que são só aparentemente higiénicos, como nas saunas dos escandinavos.

Há ainda outras heterotopias que, ainda que à primeira vista pareçam ser aberturas, servem de forma velada a curiosas exclusões. Todos podem entrar nestes sítios heterotópicos, mas essa é apenas uma ilusão: pensamos que entrámos ali onde somos, simplesmente pelo facto de ali termos entrado, excluídos. Estou a pensar naqueles quartos que existiam nos casarões do Brasil, e um pouco por toda a América do Sul: a entrada para esses quartos de dormir não era a entrada para a casa em si, a entrada da família; qualquer viajante que por ali passasse poderia abrir a porta e ocupar uma cama e dormir uma noite. Mas esses quartos estavam construídos de uma tal forma que esse indivíduo passageiro nunca tinha acesso livre às partes da casa da família; o visitante era portanto um verdadeiro convidado transitório, não era convidado sequer. Apesar deste modo ter quase desaparecido, poderemos ainda apontar alguns móteis norte-americanos como reminiscências dessa heterotopia. Qualquer homem pode ir no seu carro com a sua amante a esses motéis, em que o sexo ilícito é abrigado mas, ao mesmo tempo, também escondido e isolado. Seja como for, nunca aceite publicamente.

O último traço das heterotopias é que elas têm também uma função específica ligada ao espaço que sobra. Mais uma vez, uma função que se desdobra em dois pólos extremos. O seu papel será ou o de criar um espaço ilusório que espelha todos os outros espaços reais, todos os sítios em que a vida é repartida, e expondo-os como ainda mais ilusórios (parece-me ter sido esse o papel desenvolvido pelos famosos bordéis dos quais fomos privados). Ou então o de criar um espaço outro, real, tão perfeito, meticuloso e organizado em desconformidade com os nossos espaços desarrumados e mal construídos. Este último tipo de heterotopia seria não de ilusão, mas de compensação. Pergunto-me se certas colónias não terão funcionado segundo essa lógica. Em alguns casos, a organização que preconizavam do espaço terrestre desempenhava a função das heterotopias: por exemplo, na primeira leva de colonizadores do século dezassete, das sociedades puritanas fundadas pelos ingleses na América do Norte, e que eram a perfeição do lugar-outro. Também estou a considerar as extraordinárias colónias jesuítas fundadas na América do Sul, maravilhosa e absolutamente organizadas, nas quais a perfeição humana era de facto atingida. Os jesuítas, no Paraguai, conseguiram formar colónias nas quais todo e qualquer aspecto da existência era regulado. A própria aldeia era fundada segundo um plano rigoroso: a matriz seria um lugar rectangular, na base do qual estaria a igreja; de um dos lados, a escola, e do outro, o cemitério; à frente da igreja, uma longa avenida que seria cortada por uma outra, trasversal; e cada família teria a sua cabana ao longo destes dois eixos. Estava assim reproduzido o símbolo de Cristo, em toda a sua acuidade. A Cristandade delimitava o espaço e a geografia do mundo americano pelo seu símbolo fundamental. A vida do dia-a-dia de cada um era orientada, não por um apito de trabalho, mas pelo sino da igreja. Toda a gente acordava à mesma hora, toda a gente começava a trabalhar à mesma hora; as refeições eram ao meio-dia e às cinco da tarde; depois seguia-se a hora de deitar; e à meia-noite havia o que se chamava despertar marital, ou seja, cada cônjuge cumpria o seu dever regulado pelo toque do sino.

Os bordéis e as colónias são dois tipos extremos de heterotopias. Mas, atenção. Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo, de bordel a bordel, um navio vai tão longe como uma colónia em busca dos mais preciosos tesouros que se escondem nos jardins. Perceberemos também que o navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezasseis até aos nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento económico (ao qual não me referi aqui), e simultaneamente o grande escape da imaginação. O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.




Conferência proferida por Michel Foucault no Cercle d'Études Architecturales, em 14 de Março de 1967. Publicado igualmente em Architecture, Movement, Continuité, 5, de 1984.

Este texto foi traduzido com base no texto publicado em Diacritics; 16.1, Primavera de 1986, por Pedro Moura. Está no domínio público e esta tradução está acessível na virose