quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O enterro do virus

Certos dias
precisamos enterrar pessoas
não aquelas que não respiram
mas as outras
aquelas que sabem o que sentimos
e nem por isso deixam de viver

Certos dias
precisamos empunhar uma pá
cavar feitos loucos
abrir sepulturas sem descanso
jogar corpos e socar com os pés
dançando sobre a terra

Certas noites
precisamos dizer mais que um adeus
precisamos ser maus
e enterrar a causa da dor
mesmo sendo a da imagem amada

Certas noites
devemos revirar o inferno
procurar uma loção purificadora
o ungüento para transformar
a atração em repulsa
o ideal em desleal
o sonho em tormento
a ilusão em verdade

Certos noites
devemos desprezar
os príncipios do amor
realizar a autópsia do supremo
da maneira mais fria
arrancar os dentes do imaginário
e esmagar os olhos da esperança

Nessas noites
as sombras não devem ser respeitadas
e a imagem imediata
aquela que se esfrega no rosto da realidade
é a única que merece respeito

Nesses dias
devemos acalentar
os próprios vermes
depois que o vírus foi disseminado
a morte se torna a fúria do fogo
ausência de algo que não conhecemos
e que nunca nos deixará em paz.


Marcos Losnak
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Alberto
Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer! Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito freqüentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.


bernardo, o livro do desassossego
“Escrevo, porque este é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente illogico, (...) da minha cultura de estados da alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ella tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou A Floresta do Alheiamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditae que o faço não para que a prosa soe lucida e tremula, ou mesmo para que eu gose com a prosa – ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cahir bello de panno sobre os meus scenarios sonhados – mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realise o irrealisavel, conjugue o contrdictorio e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu maximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pagem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepusculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e elle fingindo que ouve, emquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metaphora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz tenue e ultima d’um mysterioso dia espiritual.”

Bernardo
Eu me esqueci no armário.
Pensei estar vivendo
estudando, trabalhando, sendo!
Pensei ter amado e odiado
aprendido e ensinado,
fugido e lutado,
confundido e explicado
Mas hoje, surpreso,
me vi no armário embutido
calado, sozinho perdido, parado

Fabio Rocha


ser mulher é pra sempre uma pergunta indiscreta e sem resposta

estamos à sua busca na deriva de nossas vidas

estamos á sua espera no silencio dos cantos

no silencio das esquinas onde paramos sem saber por que caminho seguir


img: the royal art lodge
'rex was a two-fisted man
who drank like a fish
and look like a purple gargoyle.
he married three
before he found one
and they hollered over cheap gin,
were friendless
and satified.
and frightened the landlord.
she holllered plenty
and he would listen dully,
then leap up red with choice words.
and then she began afain.
it was a good life.
soft and fat like summer roses.'

o velho

Meu Deus, me dê a coragem

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.


Clarisse
sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas as coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? dolorido-dolorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender melhor.


Caio. Para uma avenca partindo, O ovo apunhalado.
"... então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para liberar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim..."

caio. à beira do mar aberto, em os dragões não conhecem o paraíso

.o que retalha os sentidos é sentir.

.pesa. dói. quebra em bilhões de pedaços a mente. o amor acumula cortes. gosta de ver sangrar quem entrega a alma às permissões. estúpido em seus pactos corrompidos. sujo em suas pseudo transparências. é tudo um amontoado de tentativas sem vontades verdadeiras. tentativas sem convicção. e eu, que queimo no escuro e fundo inferno de minhas intensidades, caminho pelas lâminas com o peito aberto para os golpes. estou farto de ser assim tão absoluto. de servir de objeto de admiração e distância. sempre como uma excentricidade. sempre como uma anomalia louvável e exótica. dessas que toda gente se espanta mas que mantém a um distância segura. me esparramo pelo dia como uma noite que não reconhece o amanhecer. cato as estrelas que despencam dos meu olhos em fúria e as vomito na cara dos que dizem "ainda não". tenho a marca dos que não cessam. dos que queimam, queimam, queimam, como dizia kerouac. o que há que possa ser diferente?. todos tem uma natureza. a minha é esse excesso. e essa extrema resistência à morte da poesia nos meus poros. mais tolo por acreditar nas impossibilidades. mais frágil por festejar seus limites. mais incendiário por confessar seus sentidos. cão sem dono esse pasmar de dias. censurável o desejo que na pele pulsa límpído e lascivo. ingênuo o vociferar das vontades cometidas. não fui feito pra esse tempo de sentimentos medianos. sou aqui. sou agora. sou já.


paulo amoreira
'acontece, sempre acontece, que quando a minha vida parece ter tomado um rumo, o chao sai debaixo e eu tenho que começar tudo de novo, como se fosse fácil, como se fosse simples.. e eu fico assustada, muitas vezes eu fico assustada, porque acho que não, dessa vez não vai dar, eu vou me perder, mas não me perco e vou em frente e tudo continua normal pros outros, muito confuso pra mim, às vezes..'


elisa nazarian
"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda."

clarisse
'Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.'

bernardo
As coisas que amamos, as pessoas que amamos são eternas até certo ponto. Duram o infinito variável no limite de nosso poder de respirar a eternidade. Pensá-las é pensar que não acabam nunca, dar-lhes moldura de granito. De outra matéria se tornam, absoluta, numa outra (maior) realidade. Começam a esmaecer quando nos cansamos, e todos nos cansamos, por um outro itinerário, de aspirar a resina do eterno. Já não pretendemos que sejam imperecíveis. Restituímos cada ser e coisa à condição precária, rebaixamos o amor ao estado de utilidade. Do sonho de eterno fica esse gosto ocre na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Carlos

despalavra

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgo.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por
afeto.


manuel de barros

Puedo escribir los versos mas tristes esta noche

Puedo escribir los versos mas tristes esta noche
Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos."

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como esta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oir la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche esta estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque este sea el ultimo dolor que ella me causa,
y estos sean los ultimos versos que yo le escribo."


Pablo





Posso escrever os versos mais tristes esta noite


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.