quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O desbunde do desbunde


Resumo
A crítica literária “O desbunde do desbunde - Contribuições para uma reconstituição dos fatos que levaram ao Circuito Fora do Eixo” busca uma correlação das forças políticas que levaram aos movimentos culturais Modernismo, Tropicália e Circuito Fora do Eixo. Parte da premissa das condições históricas como alavancas determinantes para o desencadeamento de transformações culturais e rupturas políticas. Dentro das abordagens teórico-metodológicas da Comunicação Popular e da Economia Solidária, analisa os avanços que o Circuito propõe, partindo da tese segundo a qual uma profunda compreensão do momento histórico pode levar à síntese entre o mundo do trabalho e o mundo da cultura. Nesse sentido, destaca a ampla utilização - e subversão - das novas tecnologias como grande contribuição para os movimentos sociais contemporâneos na disputa de sentido.


O desbunde do desbunde*
Contribuições para uma reconstituição dos fatos que levaram ao Circuito Fora do Eixo**
por Carolina Monteiro***

O Circuito Fora do Eixo é uma rede descentralizada de produção cultural que mobiliza pessoas dos quatro cantos do país em favor de uma cultura independente, autoral e colaborativa. Suas ações têm dinamizado a cena cultural brasileira, fomentando uma oxigenação na produção por meio da descentralização e da socialização do processo de trabalho e distribuição de música, teatro, circo, audiovisual, tecnologia e informação e mobilizando artistas, produtores culturais, comunicadores, gestores e intelectuais em coletivos de produção espalhados em 24 estados.
As práticas vivenciadas neste contexto expressam a evidência de um processo que é fundamentalmente político. Nesse sentido, reivindicar a Tropicália e o Modernismo, marcos da história da cultura libertária brasileira, como antecedentes deste fenômeno, é não só legítimo do ponto de vista histórico - uma forma de compreender o longo processo que desemboca na possibilidade de uma movimentação desta complexidade -, como necessário para a construção de um projeto propositivo que avance histórica e politicamente no sentido da afirmação de um mercado cultural alicerçado sobre bases mais democráticas.
O modernismo, movimento cultural sem precedentes na história do país, repercutiu fortemente na cena artística da primeira metade do século XX, sobretudo no campo da literatura e das artes plásticas. Foi marcado pela liberdade de estilo em contraposição à métrica vazia do parnasianismo vigente. Seu mais significativo feito foi a síntese improvável entre as tendências artísticas lançadas pelas vanguardas européias antes da Primeira Guerra Mundial e as raízes culturais brasileiras, que foram deglutidas conjunta e “antropofagicamente”, resultando num híbrido que simboliza a ruptura definitiva com a arte tradicional. O modernismo lançou suas bases a partir da cidade de São Paulo que, contagiada pelo discurso do progressismo e do nacionalismo, buscava uma atualização das artes.
A tropicália, por sua vez, radicalizou a abertura modernista, se expressando pelo “desbunde” generalizado à cultura obscurantista da opressão que vigorava no Brasil na década de 60. Suas ações tinham um conteúdo essencialmente estético e comportamental e propuseram rupturas para a música, o teatro, as artes plásticas, o cinema. Assim, reinventou-se a poesia, coloriram-se os festivais midiáticos, libertou-se o ato de criação artística das amarras de uma prática cultural caduca e purista, numa conjunção entre vanguarda, cultura popular e indústria cultural. Embora não tenha se constituído como um movimento no estrito termo, a tropicália empreendeu uma experiência estética com enorme potencial crítico-reflexivo de ruptura e renovação, como foi a antropofagia para a cultura, a pop art para a arte e o concretismo para a poesia.
Tanto o Modernismo quanto a Tropicália, resguardadas as suas particularidades, estão inevitavelmente vinculados ao seu contexto histórico. O primeiro, por exemplo, surge na São Paulo dos anos 10 e 20, caracterizada, então, pelo afluxo de imigrantes italianos e por uma juventude intelectualizada crítica ao academicismo e às influências francesas da Belle Époque. Diferentemente do Rio de Janeiro, um reduto da burguesia tradicionalista e conservadora à época.
É a profunda compreensão do momento que torna possível a manipulação das condições e mecanismos favoráveis à novidade, o que, neste caso, abriu passagem para as contínuas transformações pelas quais passaram a cultura, a política e a economia brasileiras a partir do século XX. Em uma de suas lições mais valiosas, o filósofo italiano Antonio Gramsci (2004) ressalta a relevância de “uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período” para se clarear a relação entre elas e as posições que efetivamente podem assumir nas disputas pela hegemonia****. “É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações”.
Uma das imagens que, nesse sentido, melhor evocam a idéia que o Circuito Fora do Eixo (FDE) tem representado para a cultura política do país é aquela d’O Artista Igual Pedreiro*****. A ação político-cultural empreendida no âmbito da rede expressa um conteúdo marcadamente comprometido com o mundo do trabalho. Ao contrário do Modernismo e da Tropicália, o Circuito empreende uma estruturação do processo produtivo da cultura, que tem na autogestão sua opção política de administração. Daí depreende-se um dos aspectos históricos mais expressivos das potencialidades políticas da rede: como autogerir um movimento que atua em dimensões continentais? Se apropriando das condições materiais por excelência do mundo contemporâneo: o FDE promove uma sistemática ocupação da Internet e explora o potencial midialivrista das novas tecnologias da comunicação e informação.
Conforme Paul Singer, secretário da Economia Solidária e seu principal teórico no Brasil, a prática da autogestão visa a criação de um ambiente democrático de gestão, com as informações fluindo livremente entre os membros do empreendimento, já que, neste caso, há uma real apropriação, pelo trabalhador, do processo produtivo, bem como dos resultados do seu processo de trabalho. A escolha por esta forma de gestão em detrimento de outras tantas cria, por si mesma, possibilidades para o desencadeamento de um circuito de ressignificações que repercutem não apenas economicamente, mas cultural, ética e politicamente (SINGER, 1998, 2002).
A autogestão é a base do Movimento de Economia Solidária, ao qual, não por acaso, o FDE se liga formalmente. O projeto de uma Economia Solidária busca a construção de uma nova sociedade igualitária, a partir de uma transformação cultural por meio da qual os empreendimentos passem de lugar de exploração a lugar de reprodução ampliada da vida. Seu grande potencial está nesta capacidade de redesenhar padrões, no que se refere aos hábitos relacionados com os mecanismos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços, mas principalmente com relação à busca por uma nova configuração mental para o trabalhador (SINGER, 2000, 2002).A ocupação da internet como grande arena de debates, troca de informações, articulação e gestão do movimento; a potencialização da capacidade dos novos meios de comunicação em produzir informação, arte e comunicar a cultura; todas estas ações sendo empreendidas em favor de uma prática cultural livre dos jogos mercadológicos são formas de socialização dos grandes meios de produção da contemporaneidade, mas, em um nível mais profundo, formas de subversão de instrumentos criados originalmente como suporte da ideologia dominante em favor de um projeto de emancipação dos sujeitos sócio-culturais. A radicalização qualitativa do processo econômico e tecnológico contemporâneo, seguida da subversão da sua razão política, é muito simbólica da capacidade desta articulação alicerçar novos marcos subjetivos no campo das complexas tensões ideológicas e disputas de sentido da contemporaneidade.
Nesse sentido, a problemática dos processos comunicativos do Circuito Fora do Eixo insere-se, ainda, dentro da proposição da “comunicação popular”. Esta área do saber (e campo de ação) tem oferecido contribuições para um modelo de intervenção social orientado no sentido de conferir aos indivíduos e coletividades secularmente oprimidos uma visão sistêmica de sua condição no mundo, das mediações às quais está sujeito, bem como das possibilidades de intervenções sociais libertadoras pelas quais ele pode construir sua história.
Na concepção da comunicação popular, o indivíduo supera a condição de receptor ou emissor, e passa a produzir e consumir participando coletivamente da construção de conteúdos e da gerência de sua transmissão. Cicília Peruzzo (2004) ancora a comunicação aos movimentos sociais, creditando a ela a capacidade de “articulação de propostas políticas”, que respondem às contradições sociais se estruturando como luta da população por “espaços democráticos negados pela classe do poder”. O processo que está em curso, com o FDE na vanguarda do processo, constitui-se por meio da contínua (re)criação de narrativas e da experimentação de relações sociais, culturais e produtivas horizontalizadas, pautadas pela autogestão, associativismo, troca e compartilhamento em rede: uma síntese histórica que a juventude persegue desde o mais remoto dos tempos.
Em um tempo histórico em que a ideologia do capitalismo busca sedimentar o senso comum de que não há alternativa a esse modo de produção, as ações do Circuito Fora do Eixo surgem como uma construção cotidiana e gradual da negação, que se manifesta positivamente sob a forma de relações sociais renovadas, que se dão em contextos de produção associada e fomentam novas concepções e práticas de formação humana. Significa reafirmar, como o mestre Jards Macalé, que o “desbunde desbundou” - que a juventude ultrapassou a enorme porta entreaberta pelo esforço de movimentos como o Modernismo e Tropicália e está viabilizando formas de vivenciar, no médio e longo prazo, não só uma cultura independente, criativa e autoral, mas uma opção profissional comprometida com um projeto político-econômico assentado sobre valores emancipadores.


Notas:


* Referência à expressão “O desbunde desbundou”, utilizada por Jards Macalé no segundo dia de debates do Observatório Fora do Eixo, contextualizando o atual estado do “desbunde” (o termo foi primeiramente utilizado por José Celso Martinez, no primeiro dia de debates, para caracterizar o comportamento da juventude durante a Tropicália). Os debates reuniram Zé Celso Martinez e Cláudio Prado, Jards Macalé, os jornalistas José Flávio Jr e Rodrigo Savazoni e a pesquisadora Giselle Beiguelman (Doutora em história da cultura pela USP).
** Crítica Literária produzida dentro da abordagem “Política” para a Campanha "Em Busca do Elo Perdido", do IV Observatório Fora do Eixo Musical, promovido pelo Circuito Fora do Eixo. O espaço de reflexão selecionou 4 pesquisadores para problematizar os debates do Observatório por meio da criação de uma crítica literária dentro das abordagens política, econômica, artística e histórica. A obra foi selecionada pela "Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre Conteúdos Artísticos em Mídias Digitais/ Internet”.
*** Carolina Monteiro é graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela UNESP/Bauru (2005) e está se especializando em Comunicação Popular e Comunitária pela UEL/Londrina. Sua linha de pesquisa tem-se consolidado na abordagem da Comunicação Popular, a qual experenciou, sobretudo, no âmbito da Economia Solidária, entre 2005 e 2010.
**** Hegemonia: conceito desenvolvido pelo filósofo Antonio Gramsci para designar a conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras. Além de congregar as bases econômicas, a hegemonia tem a ver com entrechoques de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política.
***** “Artista igual Pedreiro” (2008): álbum de estréia do power trio cuiabano Macaco Bong, do Coletivo Espaço Cubo, um dos fundadores da rede Circuito Fora do Eixo.



Referências Bibliográficas

PERUZZO, Cicilia Krohling. Da observação participante à pesquisa-ação no campo comunicacional: pressupostos epistemológicos e metodológicos. In: MELO, José Marques de; e GOBBI, Maria Cristina (Org). Pensamento Comunicacional Latino-Americano: da pesquisadenúncia ao pragmatismo utópico. São Bernardo do Campo: Umesp: Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
SINGER, P. & SOUZA, R. (2000) A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo, CONTEXTO.
SINGER, Paul. Introdução a Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
_________. “Uma Utopia Militante: repensando o socialismo”. Petrópolis: Vozes, 1998.