domingo, 24 de fevereiro de 2008

Gestalt


Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah, o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a isaiah, e começou pensando spizonismos: "de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra". Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para seu próprio instante o spinoza citado aí de cima acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e por isso isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente doente parece, sempre doente, é o que o mais dizia na sua língua. é doença, não é, hilde? hilde, sua mãe, sorria, ach nem, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de isaiah, isaiah agachou-se, redondo de afago e foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parêntese devo me permitir antes de terminar: isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.



Hilda Hilst

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