terça-feira, 17 de novembro de 2009

sinto-me ofendido

Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral. Já a palavra "dever" é para mim desagradável como um intruso. Mas os termos "dever cívico", "solidariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de janelas. Sinto-me ofendido com a suposição, que alguém porventura faça, de que essas expressões têm que ver comigo, de que lhes encontro, não só uma valia, mas sequer um sentido.

Vi há pouco, em uma montra de loja de brinquedos, umas coisas que exatamente me lembraram o que essas expressões são. Vi, em pratos fingidos, manjares fingidos para mesas de bonecas. Ao homem que existe, sensual, egoísta, vaidoso, amigo dos outros porque tem o dom da fala, inimigo dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem que há que oferecer com que brinque às bonecas com palavras vazias de som e tom?

O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa.

Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reformador é um homem que vê os males superficiais do mundo e se propõe curá-los agravando os fundamentais. O médico tenta adaptar o corpo doente ao corpo são; mas nós não sabemos o que é são ou doente na vida social.

Não posso considerar a humanidade senão como uma das últimas escolas na pintura decorativa da Natureza. Não distingo, fundamentalmente, um homem de uma árvore; e, por certo, prefiro o que mais decore, o que mais interesse os meus olhos pensantes. Se a árvore me interessa mais, pesa-me mais que cortem a árvore do que o homem morra. Há idas de poente que me doem mais que mortes de crianças. Em tudo sou o que não sente, para que sinta.

Quase me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindo-se não, que não é ela que se colora, mas o ar em que bóia incerta; mas como me parece que ela mesma que se colora, é isso que digo, pois hei-de por força dizer o que me parece, visto que sou eu.


Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

tedio

Imagine um homem de 35 anos. Todas as manhãs ele pega o carro, entra no escritório, classifica arquivos, almoça na cidade, joga na lotérica, reclassifica arquivos, sai do trabalho, bebe uma cerveja, regressa a casa, encontra a mulher, beija os filhos, come um bife vendo televisão, deita-se, fornica, adormece. Quem reduz a vida de um homem a essa lamentável sequência de clichês? Um jornalista, um policial, um pesquisador, um romancista populista? De modo nenhum. É ele próprio, é o homem de que falo que se esforça em decompor o dia em uma sequência de posses escolhidas mais ou menos inconscientemente no meio de uma gama de estereótipos dominantes. Arrastado de corpo e de consciência perdidos, numa sedução de imagens sucessivas, desvia-se do prazer autêntico para ganhar, por um ascese de paixão, uma alegria adulterada, excessivamente demonstrativa para ser mais do que fachada. Os papéis assumidos um após o outro lhe proporcionam uma titilação de satisfação quando consegue modelá-los fielmente em estereótipos. A satisfação do papel bem desempenhado é diretamente proporcional á distância com que ele se afasta de si próprio, com que se nega, com que se auto-sacrifica.


Raoul Vaneigem

sábado, 14 de novembro de 2009

love is a fire

Love is a fire
It burns everyone
It desfigures everyone
It is the world´s excuse
for being ugly

Leonard Cohen

roubada da amanda

domingo, 8 de novembro de 2009

lebensäusserung



"(...) Pressupondo o homem como homem e seu comportamento com o mundo enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar amor por amor, confiança por confiança etc. Se tu quiseres fluir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada; se queres influência sobre outros seres humanos, tu tens de ser um ser homem que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e encorajador. Cada uma das tuas relações com o homem e com a natureza tem de ser uma externação (Äusserung) determinada da vida individual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade. Se tu amas sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua externação de vida (Lebensäusserung) como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade. (...)"

in: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 161

roubado do regis

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

existir por existir

'E assim, todos faziam tudo igual. Todos viveram do mesmo modo, apesar das diferentes idades. Pessoas morriam, por um dia choravam. Pessoas nasciam, por um dia festejavam. Havia uma linha a ser seguida, e ninguém nunca ousou sair do padrão. Se vestiam do mesmo modo, comiam e ouviam as mesmas coisas. As máscaras eram sempre as mesmas, cheias de moralidade ao avesso, valores teóricos.
E assim, castelos foram construídos em cima de erros egocêntricos. Riquezas foram acumuladas em vão, nítida mesquinhes. O amor era facilmente domado por interesses e conveniência. Era amor?
E assim, todos existiram felizes para sempre. E isso, de nenhum valor tem. Existir por existir é o mesmo que a própria morte. Existir por existir é como sobreviver a espera do fim. Uma vida sem sentido, faces da mentira.'

http://antigautopia.blogspot.com/2008_06_01_archive.html

roubada da stela, à dosto

in the fishtank


In The Fishtank is an ever ongoing project of Konkurrent, independent music distributor in the Netherlands. In this collection Konkurrent invites musicians to whom they feel strongly related to record. They are given two days studio time and freedom to do whatever they like musically.
The Fishtank offers a space for expression and experimentation, results may vary but are always surprising.


fish 9
sonic youth + the ex + I.C.P.


1. III
2. IV
3. V
4. VI
5. II
6. VIII
7. IX
8. X

baixe:
http://sonoraaurora.blogspot.com/2009/10/sonic-youth-icp-ex-in-fishtank-2001.html


fish 15
sparklehorse + fennesz (2009)


1. Music Box Of Snakes
2. Goodnight Sweetheart
3. Shai-Hulud
4. If My Heart
5. Mark’s Guitar Piece
6. NC Bongo Buddy
7. Christian’s Guitar Piece

baixe:
http://rapidshare.com/files/274011882/Sparklehorse___Fennesz_-_In_the_Fish_Tank.zip


fish 5
the ex + tortoise
1998


1. The Lawn Of The Limp
2. Pooh Song
3. Central Heating
4. Pleasure As Usual
5. Did You Comb?
6. Huge Hidden Spaces


fish 14
isis + aereogramme
2006


1. Low Tide
2. Delial
3. Stolen


fish 10
motorpsycho + jaga jazzist
2003


1. Bombay Brassière
2. Pills, Powders And Passion Plays
3. Doffen Ah Hum
4. Theme De Yoyo
5. Tristano


fish 11
the black heart procession + solbakken
2004


1. Voiture En Rouge
2. Dog Song
3. Nervous Persian
4. A Taste Of You And Me
5. Things Go On With Mistakes
6. Your Cave

baixe:
http://www.mediafire.com/?rzygy55gmz4


fish 13
solex + m.a.e.
2005


1. 5 Superstar
2. Go Easy On The Fun Fund
3. 1 + 1 = 11
4. Birthday Superboy


fish 12
karate
2005


1. Strange Fruit
2. The Only Minority
3. Tears Of Rage
4. Bob Dylan Wrote Propaganda Songs
5. Need A Job
6. This Ain't No Picnic
7. Colors
8. A New Jerusalem


aqui!
http://www.mediafire.com/?nzzhc2ymnmy

fish 8
willard grant conspiracy + telefunk
2002


1. Twistification
2. Cuckoo
3. Grün Grün
4. Near The Cross
5. Just A Little Rain
6. Dig A Hole In The Meadow


fish 7
low + dirty three
2001


1. I Hear… Good Night
2. Down By The River
3. Invitation Day
4. When I Called Upon Your Seed
5. Cody
6. Lordy


fish 6
june of 44
1999


1. Pregenerate
2. Generate
3. Henry's Revenge
4. Modern Hereditary Dance Steps
5. Every Free Day
6. Good Day
7. Degenerate


fish 4
snuff
1998


1. Match Of The Day
2. Pen Blywd Happus
3. Bananas
4. Guinevere
5. No Tenemos Bananas
6. Rods' n'Mockers
7. Vi Har Inge Bananer
8. C'mon Let's Do The Head Bang
9. Wir Haben Keine Bananen


fish 3
tassilli players
1997


1. Into The Grey Area
2. The Hempster Meets The Grim Reefer In Dub
3. The Wobbler
4. Uit Het Grijze Gebied


fish 2
guv'ner
1997


1. Concorde Jets
2. Help Me
3. Now Is Not The Time To Love Me
4. Whose Eyes
5. Jungle Bells
6. You Lie


fish 1
nomeansno
1996




1. Would Be Alive
2. The River
3. Joy
4. You're Not One
5. Big Dick


fonte:
http://www.konkurrent.nl/labels/fishtank.html

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Necessidade de produzir para não me sentir tão apagado. Tristíssimo, tão irrealizado. Eu me prometi as rédeas do mundo. Por longos instantes de uma curta história eu me apegara em promessas ricas a meu respeito, supondo quais seriam minhas contribuições futuras e de que modo o meu respeitável público – todo o mundo, todo ele – reconheceria meu valor inestimável.
Uma forma pouco comum de confiança me guiava no escuro. Não que eu não sentisse medo... Sentia dolorosamente, mas até o medo se tornava parte da minha odisséia. Tudo era absorvido, conseqüentemente suportado, numa andança em círculos, justificada por uma apatia ora chamada de serenidade, ora de sapiência. Não há pecado algum nas pretensões. Sobretudo na infância, quando ainda não somos nada. O que ocorre é que ao contrário dos dentes de leite, elas não se vão com o passar do tempo. Elas perduram por toda vida e, a partir de um dado momento, tornam-se referenciais do que eu não fui. São e serão tormentas.

e.m.
Em quatro dias eu estaria seco. E seria um retorno, na realidade. Por que no primeiro, fui pego de calças curtas. Me puxaram pelas canelas pra eu ficar de pontacabeça. Mas é como fazem com as galinhas após o abate. Elas, se soubessem como é difícil administrar todo o sangue na esfera do crânio ainda vivo, duvido que fariam tanto escândalo. Mais fácil é deixar-se ser decepado e dar vazão ao vermelhoespesso. No segundo, tentei colocar tudo em ordem, ainda que continuasse pendurado pelas pernas. Até escolher a Ordem que mais me convinha, perdi um certo tempo. Daí, passei a fazer uso das mãos, ouvidos e até dos olhos apesar de tanto desconfiar deles. As narinas não pude usar, por que elas logo se revelaram um duto rigoroso. Pelas minhas narinas eu me coloquei do lado de fora. Esparramei-me pela terra úmida tornando-a um tanto mais germinável. Que espécie vegetal nascerá dali? Com o terceiro dia, quis acreditar que eu podia muito. Um pêndulo tem toda a liberdade desse mundo, dentro dos limites que a corda e ar dão... Eu me arrisquei um pouco. Balancei. Senti o vento. O impulso, evidente, vinha de meu abdômen, que como uma usina, agia dando movimento aos fluidos de meu corpo. Mais sangue pelas narinas. Amanheceu. Eu quis ser original. Mas estou indisposto. Pois não fui sendo ressecado nos últimos dias?

e.m.

fragmento

tenho lido algumas primeiras páginas de grandes clássicos que compro e assento na prateleira. veja bem, eu os compro.
tenho pretendido assistir alguns títulos bastante instigantes do cinema oriental. quase sinto saudades da família. consigo tecer grandes e eloqüentes diálogos, com curto prazo de validade.
uma sucessão de metades é a minha rotina, o que não é necessariamente dramático. A não ser pelo fato de eu acabar conhecendo - sempre e apenas - os primeiros atos, os primeiros tempos, a primeira idade das coisas e dos homens.
pudesse olhar de perto os desfechos, tateá-los, prová-los, excecrá-los, degluti-los, talvez desenvolvesse um senso geométrico mais refinado ou mesmo se revelaria em mim uma vocação vibrante para a culinária, para o automobilismo.
mas ao que tudo indica, não será assim. parece que preciso é me acomodar na margem de cá e tentar fisgar no ar os contornos revelados pelos ecos de meu próprio grito.

e.m.

sábado, 3 de outubro de 2009

meh



múm, islandia

domingo, 27 de setembro de 2009

do amor

'o amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor, mas pelo desejo do sono compartilhado'

milan kundera
'deus nao lhe servia para nada, a nao ser para afasta-la dos Homens e torna-la só. ela nao queria deixar os Homens. por isso, começou a chorar'

stela

ai daqueles


Ai daqueles
Que se amaram sem nenhuma briga
Aqueles que deixaram
Que a mágoa nova
Virasse a chaga antiga

Ai daqueles que se amaram
Sem saber que amar é pão feito em casa
E que a pedra só não voa
Porque não quer
Não porque não tem asa.

Leminski

tática e estratégia

Minha tática é
olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és


minha tática é
falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível


minha tática é
ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti


minha tática é
ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois


não haja cortinas
nem abismos


minha estratégia é
em outras palavras
mais profunda e mais
simples
minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.


Mario Benedetti

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

i'm so tiny



you are my tiny in my heart

michel gondry

terça-feira, 8 de setembro de 2009

The Royal Art Lodge

singelo & poético




www.royalartlodge.com

sábado, 5 de setembro de 2009

Pequeña Fiera






http://www.myspace.com/pequenyafieraa

The Papercuts



San Francisco, California

www.myspace.com/thepapercuts


download em:


can't go back




dont-disappear.blogspot.com/2009/04/papercuts-cant-go-back.html



mockingbird




mediafire.com/?nmqe52vibi7

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A ARTE E A EDUCAÇÃO: FERRAMENTAS NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA DE RESISTÊNCIA



Este texto é fruto de um convite para escrever sobre uma ocupação de sem-tetos da cidade de São Paulo, Ocupação Prestes Maia, e suas experiências com a arte e a educação. São temas que permeiam um interesse pessoal de pesquisa, que se iniciou com a minha observação e participação dentro do grupo Integração Sem Posse(1). Assim os apontamentos e contribuições neste texto surgem de um olhar na condição de artista e artista professora, que tenta buscar caminhos de atuação e investigar o papel desta condição na realidade abordada. O trabalho parte de uma investigação participativa que pode ser encontrada com mais detalhes na minha tese de graduação(2).

Segregação Espacial

Nas sociedades do mundo globalizado está presente a lógica econômica que define e interfere profundamente a vida social em todos seus aspectos. No campo macro tal lógica, de princípio neoliberal, segrega os países em desenvolvidos, subdesenvolvidos e emergentes, no campo micro, segrega os indivíduos por seu poder aquisitivo espacialmente, gerando um processo de exclusão, e periferização, nítido em grandes centros urbanos, como é o caso da cidade de São Paulo.

No caso do Brasil, oitavo no mundo no que se refere à desigualdade social[3], a distância entre as extremidades das classes sociais cria fenômenos significativos que surgem em resposta a uma violência opressora que se dá visível e invisivelmente. No caso da reivindicação por moradia, esta se estende em todo território nacional e é realizada por uma parcela mais pobre e marginalizada da população, identificada pela ONU como uma das populações vulneráveis[4].

São iniciativas que tentam promover mudanças estruturais a fim de romper este círculo vicioso que se coloca como pré-requisito em direção de uma sociedade mais justa e democrática[5]. No caso da cidade de São Paulo, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), do qual a ocupação Prestes Maia faz parte, tem que se deparar com ciclos e projetos que interferem diretamente na luta dos sem-tetos. A maioria dos participantes é da região norte e nordeste do Brasil e ao chegarem à metrópole vive um impacto cultural por haver uma quebra de identidade cultural e simultaneamente sofrem dificuldades de se estabelecer por falta de acesso a espaços urbanos de qualidade, um processo violento chamado de “ciclo de marginalização”[6]. Assim se observa que a exclusão social está relacionada não apenas a condição sócio-econômica, mas também a origem das famílias.

O centro da cidade apresenta hoje 39.289[7] unidades vazias. Neti, liderança do MSTC, deixa claro em sua fala o porquê de morar no centro: Porque lá já existe tudo, não é preciso levar estrutura. Há escola, hospital, cultura [...] Ninguém vai pagar quatro conduções a uma empregada diarista que mora na periferia[8].

Além disso, há em ação um projeto (em processo em várias cidades do mundo) que influencia diretamente na reivindicação por moradia: a revitalização de áreas centrais. Em 2001 foi criado o projeto Ação Centro que tem como objetivos principais: recuperação de áreas degradadas, melhoria da qualidade ambiental, fomento a pluralidade econômica, inclusão social e reversão do esvaziamento residencial[9]. Aparentemente o projeto se preocupa com todos os requisitos necessários para haver uma intervenção significativa. Mas nos dois últimos governos da prefeitura este projeto tem se mostrado infiel principalmente ao seu penúltimo objetivo.

Novamente os interesses econômicos imperam sobre os interesses humanos e tal política está se caracterizando como um trabalho de “higienização”. Tem-se, portanto uma intervenção que embeleza e desenvolve o comércio da região e ao mesmo tempo retira as populações vulneráveis realizando desapropriação das ocupações, transferências de albergues situados no centro, construção de rampas “antimendigo” ou “antimorador de rua” e transferência de cooperativas de catadores para as periferias.

Ocupação Prestes Maia e a Arte Contemporânea

Dentro deste quadro o Edifício Prestes Maia é um dos alvos de desapropriações desde maio de 2005 quando foi dada a ordem judicial de Reintegração de Posse. Antes deste se tornar uma ocupação ficou 20 anos abandonado. Há 4 anos é moradia de 468 famílias, abrigando aproximadamente 2500 pessoas que vivem em estado de tensão permanente por medo de perderem suas casas. A maior ocupação vertical da América Latina tem duas torres de 20 e 10 andares e nela vivem pessoas que não tem renda suficiente para pagar aluguel, como catadores de papel, porteiros, empregadas domésticas, entre outros. O imóvel está avaliado em 3,5 milhões de reais e apresenta uma dívida de 4,5 milhões de reais.

Em 2003 se iniciou uma relação entre ocupação e artistas contemporâneos com a realização de uma grande exposição de 120 artistas que tomaram todo o espaço da ocupação para exposição. Tal ação teve uma grande repercussão e atraiu muito o olhar da mídia que demonstrou a uma visão exótica e pouco compreensiva publicando matérias em cadernos de cultura de jornais, focando apenas como um evento cultural.

Fabiane Borges, coordenadora do evento, fala sobre a proposta como uma: Coordenação experimental, sem controle de coisa alguma, em tudo esquizofrênica, sem nenhum tipo de financiamento, cuja existência sustentou-se naquelas três semanas de encontro. Nossa única proposta aos artistas foi que entrassem em contato com o espaço com as pessoas, com seus modos de vida e que, a partir desse encontro, se pudessem, se pusessem em obra[10]. Fica claro um caráter experimental, que não tinha uma problemática clara de trabalho, e que inevitavelmente encontrou várias dificuldades no decorrer da ação principalmente por aproximar universos culturais muito distintos.

Em maio de 2005, após sair a ordem de Reintegração de Posse, alguns artistas que haviam participado do evento anterior criaram o grupo Integração Sem Posse, que tem como principal objetivo apoiar o MSTC e a Ocupação Prestes Maia. A partir deste momento tive conhecimento da ocupação pelo grupo e iniciei minha investigação sobre o papel do artista e do artista professor na comunidade.

Como forma de apoio, para chamar atenção da mídia e da sociedade, foram realizados eventos elaborados pelos artistas aos sábados, que se caracterizaram por uma programação muito variada como projeção de vídeos, intervenções, exposição de obras de artistas e oficinas.

Dentro dos eventos existia o objetivo de divulgação da realidade da ocupação na mídia. A estratégia utilizada eram os eventos de arte contemporânea junto a um esforço de trazer renomes da arte para atrair a atenção da sociedade. Nos convites produzidos para divulgação dos eventos ficava implícita a idéia de que visitando um evento de arte contemporânea a pessoa estaria apoiando o movimento de luta por moradia.

Após um mês de observação sobre as ações do grupo percebi que estas estavam muito voltadas para a arte contemporânea e durante esse processo ficou muito marcada a expressão dos artistas e pouco ou nada se via sobre a produção da comunidade local. Além da ausência de expressões locais notava-se também a ausência dos próprios moradores da ocupação nos eventos elaborados pelos artistas.

De fora pra Dentro

A experiência do Prestes Maia e do grupo Integração Sem posse faz parte de uma tendência atual de aproximação entre artistas contemporâneos e movimentos de luta por moradia. Estes aparentemente distintos a princípio tentam unir forças em uma luta que envolve fatores sociais, econômicos e políticos resultantes de uma política neoliberal desumanizadora da sociedade.

Assim, quando se tem um quadro em que arte contemporânea e movimento social se juntam, consequentemente nos leva a pensar que ambos estão com um objetivo comum de transformação da sociedade e da realidade. A arte, por apresentar um discurso à frente do seu tempo e ter se mostrado durante a história da humanidade como uma importante ferramenta de transformação do pensamento humano. E o movimento social que propõe mudanças estruturais na divisão das riquezas, o que consequentemente acarreta em uma luta por uma sociedade mais humana e democrática.

No início as ações desenvolvidas por artistas dentro da ocupação Prestes Maia, se caracterizaram por um experimentalismo ativista. As reuniões realizadas entre o grupo não eram suficientes para fundamentar o trabalho desenvolvido. Dessa forma, se considerarmos os artistas potenciais agentes de transformação da realidade, veremos que se basearem seu trabalho apenas em ações que abandonam uma postura reflexiva que envolva a teoria junto a prática, inevitavelmente criarão um trabalho ingênuo e correrão o risco de favorecer interesses outros. Sobre ações ativistas Paulo Freire alerta os riscos: A tão conhecida afirmação de Lênin: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” significa precisamente que não há revolução com verbalismos, nem tampouco, ativismo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas".

Qualquer profissional que se proponha a trabalhar com um público delicado por seu histórico de opressão, como é o caso da comunidade do Prestes Maia, deve ter claro que estes trabalhos exigem uma postura cuidadosa para não reforçar problemas existentes. Considerar a peculiaridade do público, ter consciência de que os conhecimentos dos agentes de transformação (no caso artistas e artistas professores), são limitados devido a sua condição de classe social, cria uma postura respeitosa para iniciar um diálogo necessário em trabalhos com populações vulneráveis.

Assim, fica difícil imaginar um trabalho significativo apenas baseado em ações com um propósito “midiático” pois ativismo cria uma relação antidialógica entre moradores e artistas.

Na intenção de usar meios de comunicação para a divulgação do problema, percebeu-se que a maioria destes instrumentos da mídia são extremamente tendenciosos e reproduzem um olhar preconceituoso que muitas vezes não condiz com a realidade e propaga a lógica estabelecida. Por outro lado a divulgação atraiu mais simpatizantes a causa do Prestes Maia. Em relação a outra intenção (de atrair grandes nomes de artistas contemporâneos) fatalmente fez com que o movimento se tornasse dependente de ações solidárias dos mesmos, o que não traz uma solução para o problema dos sem-teto, apenas afirma dependências.

O que nos leva a outra discussão: se queremos pensar em uma arte parceira dos movimentos sociais, será coerente realizar nestes locais de ocupação exposições de arte contemporânea? Creio que pode ser válida se a proposta for multiculturalista e considerasse a cultura dos sem-tetos, mas não foi isso que aconteceu no caso do Prestes Maia. Imperou nos eventos as expressões dos artistas e ficou muito evidente a ausência dos moradores, o que de certa forma pode ser entendida como uma resistência (consciente ou inconsciente) à cultura dominante. Toda a elaboração dos eventos era realizada principalmente pelos artistas, o que fazia com que os moradores ficassem em uma postura muito receptiva e pouco participativa, ou seja, os projetos estavam inicialmente sendo elaborados para eles e não com eles.

O papel do artista e do artista professor

Quando consideramos as culturas envolvidas neste caso vemos que a arte contemporânea se caracteriza socialmente por uma produção específica, realizada predominantemente pela classe média e alta, e em um outro extremo há a cultura nordestina que é pouco ou nada valorizada pelos paulistanos.

Acredito que um movimento social pede a criação de uma cultura de resistência, que dificilmente será criada com códigos da cultura dominante ou pela classe dominante. Cada cultura tem seus códigos e para que ela exista e crie sua identidade necessita de ferramentas para criá-la. Nós, artistas contemporâneos, quando produzimos sobre o tema dos movimentos de moradia não estamos criando uma nova cultura, estamos criando objetos com um tema específico e com códigos específicos, que não são os mesmos códigos culturais dos sem-tetos. Assim, se pretendemos desenvolver com os sem-tetos uma cultura de resistência, baseada num ideal de uma nova sociedade, devemos fazer isso com eles, de forma que eles sejam os principais criadores e nós, facilitadores e mediadores da sua produção. Claro que isso não quer dizer que os produtores da cultura de resistência não precisam conhecer os códigos da classe dominante, mas este conhecimento será bem agregado quando os sujeitos envolvidos tiverem claro qual é a sua raiz cultural. Dessa forma, o reconhecimento de uma cultura oprimida contribui no desenvolvimento a consciência de classe que associada à produção da cultura de resistência fará com que os sujeitos tenham claro alguns valores que envolvem a sua produção.

Nesse sentido as ações iniciais desenvolvidas em 2003 e 2005, foram válidas como um primeiro contato principalmente para levantamento de dados, pois posteriormente a realidade apresentou novos desafios. Ficou claro que as ações iniciais produziram uma relação antidialógica, pois a construção foi unilateral. Estas podem ser relacionadas ao conceito de educação bancária de Paulo Freire, pois os artistas levaram arte contemporânea para uma ocupação desconsiderando ou dando pouca importância à produção e as culturas pré-existentes. Cria-se assim uma diminuição do papel dos atores sociais locais e uma supervalorização dos atores externos que se juntam à causa do movimento, mas não fazem parte da realidade local.

A ausência dos moradores nos eventos propostos fez com que tais ações fossem questionadas e alguns artistas puderam entrar em um processo de investigação do seu papel, o que garantiu o início de novas propostas e de um novo movimento interno na ocupação.

A partir daí começou um movimento novo com a intenção de desenvolver propostas que fossem ao encontro dos interesses dos moradores. Foram desenvolvidos alguns projetos educativos, dentre eles, encontros com aulas de arte em que fui propositora. Estes encontros tiveram caráter de estudo exploratório e tinham como principais objetivos: trabalhar a identidade local e individual através de experiências artísticas e levantar necessidades e expectativas dos moradores em relação a novos projetos. A partir da experiência pude concluir e levantar dados relevantes para a continuidade de projetos na comunidade.

Um resultado extremamente significativo da relação mais dialógica e participativa entre moradores e artistas, foi a criação da Biblioteca Prestes Maia. A idéia surgiu de um morador que em seu discurso sempre colocava que uma das principais emergências da Ocupação era o desenvolvimento de projetos educativos. Assim, Severino Manoel de Souza, Catador de Papel, iniciou a biblioteca juntando livros encontrados nas ruas. A biblioteca contou com doações de diversas origens e hoje apresenta em seu acervo de aproximadamente 4500 exemplares.

Os projetos desenvolvidos no ano de 2006 mantiveram essas características que foram iniciadas no final do ano de 2005. Iniciaram-se projetos que vão ao encontro do interesse dos moradores: aulas de alfabetização, projeto de reciclagem, aulas de arte e a biblioteca que sempre recebe doações e não para de crescer.

Estas experiências deixam claro que as propostas necessitam surgir da própria comunidade e se adequarem as realidades para terem um significado coletivo. Para isso precisam ser construídas e elaboradas junto com os sujeitos envolvidos. Dessa forma, artistas e artistas professores podem contribuir no desenvolvimento da cultura interna da ocupação se baseando nos interesses dos moradores.

Para que esta construção coletiva seja possível os agentes de transformação precisam ter claro que também se transformarão durante o processo, pois aprenderão sobre uma realidade da qual normalmente não fazem parte. Aprenderão com os sujeitos os possíveis caminhos que poderão construir juntos, num processo de diálogo e de encontro de interesses que demanda tempo. Esses caminhos não são possíveis de serem construídos apenas com eventos pontuais de artes.

NOTAS


1 Grupo criado principalmente por artistas em junho de 2005.
2 LAMBERT, Gabriela Zelante. Arte-Educação na Ocupação Prestes Maia: uma Contribuição para a Conquista da Autonomia Cultural, 2005.
3 Segundo o relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em 177 países.
4 SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU de 29 de maio a 12 de junho de 2004 - Violações, práticas positivas e recomendações ao governo brasileiro. Segundo o relatório da ONU cosiste em uma parcela mais pobre e marginalizada da população urbana (favelados, sem-teto, moradores de cortiços) e trabalhadores rurais tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas).
5 GRACIANE, Maria Stela. Santos. Pedagogía Social de Rua: uma análise e sistematizaçao de uma experiencia vivida 4ª ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. – (Coleção Prospectiva, v.4). p. 21,22.
6 In: GRACIANI, Maria Stela, op. cit., p. 138. Dados da Pastoral Social de Arquidiocese.
7 SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes, op. cit., p. 37.
8 Idem, Ibidem, p. 36.
9 http://portal.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/emurb/reabilitacao_centro/0001 - acesso em - 07/10/05.
10 BORGES, Fabiane. “Ocupação de Espaços, Almas e Sentidos”. IN: Global Magazine, Revista Global da América Latina, 19 de março de 2004.

Bibliografia


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia Social de Rua: uma análise e sistematização de uma experiência vivida. 4ª ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. – (Coleção Prospectiva, v.4)
LAMBERT, Gabriela Zelante. Arte-Educação na Ocupação Prestes Maia: uma Contribuição para a Conquista da Autonomia Cultural, 2005.
SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU de 29 de maio a 12 de junho de 2004 - Violações, práticas positivas e recomendações ao governo brasileiro.

Gabriela Zelante Lambert


http://www.rizoma.net/interna.php?id=343&secao=artefato

Um homem com uma dor

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante


leminski

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Deixa isso pra lá

'deixa isso pra lá
já é tarde demais
amanha talvez
ou depois de manha
deixa eu te dizer
que hoje tudo mudou
quem diz que não em
vai deixando pra trás
alguém que foi
alguém que quis alguém
e muito mais
além do bem e do mal
que voce fez
que todo mundo faz
e ate talvez
a gente queira
desaparecer
ao menos por um dia
como entender
que eu ja não sei mais
gostar de voce'


pedro selector

qados

Basta. Tempo de amor, o meu agora, Cão de Pedra. Que eu viva a carne e grandeza. E principalmente isso: que eu Te esqueça. Mais nada.

hilda

domingo, 24 de maio de 2009

Pequenos olhos

Pequenos olhos
Pequenas amêndoas
Pequenos olhos
Me aguardam, me agarram na última hora
Agora adeus
Os meus braços e olhos rasos d'água
Meu adeus

Saudade, meu
Saudade entrego adeus
Saudade, meu
Saudade entrego adeus

Pequenos olhos
Pequenas amêndoas
Pequenos olhos
Me aguardam, me agarram na última hora
Agora adeus
Os meus braços e olhos rasos d'água
Meu adeus

Saudade, meu
Saudade entrego adeus
Saudade, meu
Saudade entrego adeus
Saudade, meu
Saudade entrego adeus

Vamos ser da mesma boca
A mesma oca cheia de sal
Cheio de sol
O sal do mar e a luz
Vamos de sol pra dourar
O que há de bom
O que há de bom tom
Como se beijar a sós sem que os olhos vejam
E escancarar a cor ali
Vamos ser de um só
Um, meu bem e bem aqui
Na boca do estômago que arrepia
Que esfria
Vamos ser da boca do sol



cibelle

E só

quando estar sozinho
ficar sozinho
e só

e só
ficar sozinho
quando estar sozinho



arnaldo..

Falas de civilização

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!


alberto..

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Queen victoria

Queen victoria,
My father and all his tobacco loved you,
I love you too in all your forms,
The slim and lovely virgin floating among german beer,
The mean governess of the huge pink maps,
The solitary mourner of a prince.

Queen victoria,
I am cold and rainy,
I am dirty as a glass roof in a train station,
I feel like an empty cast iron exhibition,
I want ornaments on everything,
Because my love, she gone with other boys.

Queen victoria,
Do you have a punishment under the white lace,
Will you be short with her, will you make her read those little bibles,
Will you spank her with a mechanical corset.
I want her pure as power, I want her skin slightly musty with petticoats
Will you wash the easy bidet out of her head?

Queen victoria,
Im not much nourished by modern love,
Will you come into my life
With your sorrow and your black carriages,
And your perfect
Memories.

Queen victoria,
The twentieth century belongs to you and me.
Let us be two severe giants not less lonely for our partnership,
Who discolour test tubes in the halls of science,
Who turn up unwelcome at every worlds fair,
Heavy with proverbs and corrections,
Confusing the star-dazed tourists
With our incomparable sense of loss.


Leonard..

segunda-feira, 18 de maio de 2009

I love you Creedence

I'm Creedence Clearwater Wright
best friend of Elodie Eye
we've been tight since Percy Elementary
class of 1985
we moved together out to Philly after college
took a two bedroom at South & 9th
I sold my violin so we could have it easy
El got her grandmother's money when she died

we laughed like we were queens
& split our ballgowns at the seams
& every single time I'd dream
it was only El & me
but then she slipped away from me
she met a boy from New Jersey
& they fell fast in love of course
I swear it felt like a divorce

this September I'll be 26 years old
& El's the only one besides my dad
who's ever said I love you Creedence

took got a job downtown
it's an hour on the bus each way
typing letters for a lawyer in a bad toupee
it's dumb I know but it pays okay

& did I mention I moved out
I got my own place off of South
& I've been living hand to mouth
for going on a year by now
& yes I still see El around
it's different but I can't say how
she cut her hair it's back to brown
she's living with her boyfriend now

& since September I've been 26 years old
she's still the only one besides my dad
who's ever said I love you Creedence


Casiotone for the painfully alone

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Não posso acompanhar seus passos
Porque suas botas são rápidas demais
E todas as luzes estão em você
E percebo que estou ficando para trás

Quando criança eu olhava para o céu
E via os pássaros entre as nuvens
Agora desço nesse buraco frio
Onde as lembranças tristes e felizes se confundem

Menininha confusa, tire suas botas prateadas
Enxugue o sangue do meu rosto
Oh não! Você fez uma piada

Andando no meu carro mágico
Acho que podemos realmente voar
Não sinto mais medo de cair
Então está na hora de voltar

Será que estamos longe demais
E tudo mudou de verdade
Vamos apenas dançar em círculos
E nos livrar de toda essa maldade

Menininha confusa, tire suas botas prateadas
Não existe arrependimento
A semente já foi plantada


cassio..

domingo, 3 de maio de 2009

Freedom of Love

(Translated from the French by Edouard Rodti)

My wife with the hair of a wood fire
With the thoughts of heat lightning
With the waist of an hourglass
With the waist of an otter in the teeth of a tiger
My wife with the lips of a cockade and of a bunch of stars of the last magnitude
With the teeth of tracks of white mice on the white earth
With the tongue of rubbed amber and glass
My wife with the tongue of a stabbed host
With the tongue of a doll that opens and closes its eyes
With the tongue of an unbelievable stone
My wife with the eyelashes of strokes of a child's writing
With brows of the edge of a swallow's nest
My wife with the brow of slates of a hothouse roof
And of steam on the panes
My wife with shoulders of champagne
And of a fountain with dolphin-heads beneath the ice
My wife with wrists of matches
My wife with fingers of luck and ace of hearts
With fingers of mown hay
My wife with armpits of marten and of beechnut
And of Midsummer Night
Of privet and of an angelfish nest
With arms of seafoam and of riverlocks
And of a mingling of the wheat and the mill
My wife with legs of flares
With the movements of clockwork and despair
My wife with calves of eldertree pith
My wife with feet of initials
With feet of rings of keys and Java sparrows drinking
My wife with a neck of unpearled barley
My wife with a throat of the valley of gold
Of a tryst in the very bed of the torrent
With breasts of night
My wife with breasts of a marine molehill
My wife with breasts of the ruby's crucible
With breasts of the rose's spectre beneath the dew
My wife with the belly of an unfolding of the fan of days
With the belly of a gigantic claw
My wife with the back of a bird fleeing vertically
With a back of quicksilver
With a back of light
With a nape of rolled stone and wet chalk
And of the drop of a glass where one has just been drinking
My wife with hips of a skiff
With hips of a chandelier and of arrow-feathers
And of shafts of white peacock plumes
Of an insensible pendulum
My wife with buttocks of sandstone and asbestos
My wife with buttocks of swans' backs
My wife with buttocks of spring
With the sex of an iris
My wife with the sex of a mining-placer and of a platypus
My wife with a sex of seaweed and ancient sweetmeat
My wife with a sex of mirror
My wife with eyes full of tears
With eyes of purple panoply and of a magnetic needle
My wife with savanna eyes
My wife with eyes of water to he drunk in prison
My wife with eyes of wood always under the axe
My wife with eyes of water-level of level of air earth and fire

Andre Breton

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Um raio de sol, vem pra me mostrar
Suas pequenas mãos sujas
Minto pra você, e tento me enganar
Estou cansado de todas essas fugas

Você estava distante, escondida nas nuvens
Deixe-me dormir um pouco mais
E esperar que todas as coisas feias mudem

E se Deus me deixou, onde foi que errei?
Acho que não sofri o bastante, acho que não mudei
E se eu deitar, e escutar seu coração virar dois
Talvez isso me traga paz, e não perceba que você se foi

E todas as palavras vazias, que minha alma sussurra
Não vão mais te ferir nem te incomodar
Mas aquela nuvem negra e escura
Derruba suas lagrimas e me faz afogar

Você estava distante, andando pelas montanhas
Deixe-me voar um pouco mais
Pra bem longe de todas as lembranças

E se Deus me deixou, onde foi que errei?
Acho que não sofri o bastante, acho que não mudei
E se eu deitar, e escutar seu coração virar dois
Talvez isso me traga paz, e não perceba que você se foi


kisso

segunda-feira, 30 de março de 2009

'um coração minúsculo tentando
escapar de si mesmo
dilatandose
à procura de puro entendimento'

hilda

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Começando a amar, 1791 – 1796


O Agiota Desonrado Yankel D levou a menininha para casa naquela noite. Agora, disse ele, vamos subir o primeiro degrau. Aqui estamos. Esta é a sua porta. E esta é a sua maçaneta que eu estou abrindo. E aqui é o lugar onde pomos os sapatos quando entramos. E aqui é o lugar onde penduramos os casacos. Ele falava como se ela conseguisse entendê-lo, nunca em tom agudo ou em monossílabos, e nunca com palavras sem sentido. Isto que eu estou lhe dando é leite. Vem de Mordechai, o leiteiro, que você vai conhecer um dia. Ele tira o leite de uma vaca, o que pensando bem é uma coisa muito estranha e perturbadora, de modo que não pense nisso... Esta é a minha mão, alisando o seu rosto. Algumas são canhotas e outras são destras. Ainda não sabemos o que você é, porque você só fica sentada aí e deixa que eu faça tudo... Isto é um beijo. É o que acontece quando os lábios são comprimidos e encostados em alguma coisa, às vezes outros lábios, às vezes uma bochecha, às vezes outra coisa. Depende... Isto é o meu coração. Você está tocando nele com a mão esquerda, não porque seja canhota, embora talvez seja, mas porque eu estou segurando a sua mão junto ao meu coração. O que você está sentindo é o batimento do meu coração. É isso que me matém vivo.
Ele fez uma cama com jornais amassados numa assadeira funda e colocou-a delicadamente dentro do forno, para que ela não fosse perturbada pelo ruído da pequena cachoeira lá fora. Deixava a porta do forno aberta, e ficava sentado durante horas olhando para ela, como alguém poderia ficar vendo um pão crescer. Via o peito dela subir e descer rapidamente; os dedos formavam punhos e se abriam, enquanto os olhos se estreitavam sem razão aparente. Será que ela está sonhando? perguntava-se ele. E caso esteja, com o que sonham os bebês? Ela só pode estar sonhando com a vida antes do nascimento, assim como eu sonho com a vida após a morte. Quando ele a tirava do forno, para alimentá-la ou simplesmente segurá-la, o corpo dela estava coberto de letras. O TEMPO DE MÃOS TINGIDAS FINALMENTE ACABOU! CAMUNDONGO SERÁ ENFORCADO! Ou: SOFIOWKA ACUSADO DE ESTUPRO, ALEGA POSSESSÃO POR PERSUASÃO DO PÊNIS, TORNOU-SE “FORA DE MÃO”. Ou: AVRUM R MORTO EM ACIDENTE NO MOINHO DE TRIGO, DEIXA UM GATO SIAMÊS PERDIDO DE QUARENTA E OITO ANOS AMARELADO, GORDUCHO, MAS NÃO GORDO, APRESENTÁVEL, TALVEZ UM POUCO GORDO, ATENDE POR “MATUSALÉM”, TÁ LEGAL, GORDO PRA CARALHO, QUEM O ENCONTRAR PODE FICAR COM ELE. Às vezes ele a ninava nos braços ate ela adormecer, lendo o que estava escrito no corpo dela, e ficava sabendo de tudo o que precisava saber sobre o mundo. Se não estivesse escrito nela, não era importante para ele.
Yankel perdera dois filhos, um devido á febre e o outro ao moinho industrial de trigo, que todo ano, desde que fora inaugurado, tirava a vida de um membro do shtetl. Também perdera um esposa, não para a morte, mas para outro homem. Ao voltar de uma tarde na biblioteca, encontrara um bilhete cobrindo o SHALOM! do capacho da porta da sua casa: Precisava fazer isso por mim.
Lilla F remexia o solo perto de uma das suas margaridas. Bitzl Bitzl estava parado à janela da cozinha, fingindo esfregar a bancada. Shloim W espiava através do bulbo superior de uma das ampulhetas de que já não conseguia mais se separar. Ninguém dissera nada enquanto Yankel lia o bilhete, e ninguém dissera nada depois, como se o desaparecimento da esposa dele fosse uma coisa absolutamente comum, ou como se jamais houvessem notado que ele fora casado.
Porque ela não enfiara aquilo embaixo da porta? perguntara-se ele. Porque não dobrara o bilhete? Aquilo parecia um bilhete qualquer que ela lhe deixara, do tipo: Você pode tentar consertar a aldrava quebrada? ou Volto logo, não se preocupe. Era muito estranho que um tipo de bilhete – Precisava fazer isso por mim – pudesse ter a mesma aparência: trivial, mundana, nada. Ele poderia tê-la odiado por ter deixado o bilhete ali á vista de todos, poderia tê-la odiado pelo conteúdo da mensagem, prosaica e sem adornos, sem qualquer pista que indicasse, sim, isso é importante, este é o bilhete mais doloroso que já escrevi, sim preferiria morrer a ter de escrever isto novamente. Onde estavam as lágrimas secas? Onde estava o tremor na caligrafia?
Mas a esposa fora o seu primeiro e único amor, e era da natureza dos habitantes daquele shtetl diminuto perdoar seus primeiros e únicos amores; de modo que ele se forçara a compreender, ou a fingir compreender. Yankel jamais culpara a esposa por fugir com o itinerante burocrata de bigode que fora convocado a ajudar nos confusos trabalhos do vergonhoso julgamento do próprio Yankel; o burocrata podia prometer cuidar dela no futuro, tirá-la daquilo tudo, levá-la para um lugar mais calmo, sem pensamentos, se confissões, sem acordos com a justiça. Não, não era isso. O problema era Yankel. Ela queria ficar sem Yankel.
Ele passara as semanas seguintes bloqueando imagens do burocrata fodendo sua esposa. No chão, com ingredientes culinários. Em pé, ainda de meias. Na grama do quintal da imensa casa nova deles. Imaginava a esposa fazendo barulhos que jamais fizera para ele, e sentindo prazeres que ele jamais lhe pudera proporcionar, pois o burocrata era um homem, e ele não era um homem. Será que ela chupa o pênis dele? perguntava-se. Sei que pe bobagem pensar nisso, que esse pensamento só pode me causar dor, mas não consigo me livrar disso. E, enquanto ela chupa o pênis dele, pois deve chupar, o que ele faz? Fica puxando o cabelo dela para trás a fim de assistir? Fica tocando no peito dela? Fica pensando em outra pessoa? Se for isso, vou matar o sujeito.
Com o shtetl ainda observando – Lilla ainda remexendo o solo, Bitzl Bitzl ainda esfregando a bancada, e Shloim ainda fingindo medir o tempo com areia -, ele dobrara o bilhete em forma de lágrima, enfiara-o na lapela, e entrara. Não sei o que fazer, pensara. Provavelmente deveria me matar.
Não suportava mais viver, mas não suportava morrer. Não suportava pensar que ela estivesse fazendo amor com outra pessoa, mas também não suportava deixar de pensar nela. E, quanto ao bilhete, não suportava a idéia de guardá-lo, mas também não suportava a idéia de destruí-lo. Por isso, tentara perdê-lo. Deixara-o ao lado dos castiçais que gotejavam cera, colocara-o entre pães ázimos a cada Páscoa, largara-o sem cerimônia entre os papéis amassados na escrivaninha atulhada, na esperança de que o bilhete não estivesse mais ali quando voltasse. Mas o bilhete continuava sempre ali. Ele tentava massageá-lo para fora do bolso ao sentar-se no banco diante do chafariz da sereia-prostrada, mas quando enfiava a mão no bolso em busca do lenço, o bilhete estava lá. Escondia-o feito um marcador de página num dos romances que mais detestava, mas o bilhete aparecia vários dias mais tarde entre as páginas de um dos livros ocidentais que só ele lia na aldeia, um dos livros que para ele o bilhete estragara para sempre. Tal como não conseguia perder a própria vida, não conseguia perder o bilhete, que teimava em voltar para ele, ficando com ele como se fosse parte dele. O bilhete era um sinal de nascença ou um membro do seu corpo, estava dentro dele, era ele próprio, o seu hino: Precisava fazer isso por mim.
Ele perdera tantos pedaços de papel ao longo do tempo, além de chaves, canetas, camisas, óculos, relógios e talheres. Perdera um sapato, suas abotoaduras de opala prediletas (nas suas mangas, as franjas dos Desleixados eriçavam-se com rebeldia), perdera três anos longe de Trachimbrod, milhões de idéias que tencionava anotar (algumas totalmente originais, algumas profundamente significativas), seu cabelo, sua postura, pai e mãe, dois bebês, uma esposa, uma fortuna em trocados, e incontáveis oportunidades. Perdera até um nome: ele chamava-se Safran antes de fugir do shtetl, Safran do nascimento até sua primeira morte. Não parecia haver nada que ele não fosse capaz de perder. Mas aquele pedaço de papel não desaparecia jamais, como tampouco desaparecia a imagem de sua esposa prostrada, ou o pensamento de que se ele conseguisse, seria de imenso proveito acabar com a vida.
Antes do julgamento, Yankel-então-Safran era admirado incondicionalmente. Era o presidente (além de secretário, tesoureiro e único membro) do Comitê de Artes Belas e Boas, e o fundador, diretor-geral com vários mandatos, e único professor da Escola de Aprendizado Mais Elevado, que se reunia na sua casa, e cujas aulas eram freqüentadas por ele mesmo. Não era incomum que uma família desse um jantar de vários pratos em homenagem a ele (ainda que não em sua presença), ou que um dos membros mais abastados da comunidade encomendasse um retrato dele a um artista itinerante. E os retratos eram sempre lisonjeiros. Ele era uma pessoa que todos admiravam e de quem todos gostavam, mas que ninguém conhecia. Era como um livro que você se sente bem ao segurar, sobre o qual pode falar sem ter lido a obra, e que pode até recomendar a outros.
A conselho de seu advogado, Isaac M, que desenhava aspas no ar a cada sílaba que pronunciava, Yankel se declarara culpado de todas as acusações de procedimento fraudulento, na esperança de que isso reduzisse a sua pena. Acabara perdendo a licença de agiota. E, além da licença, perdera seu bom nome, que é, como se diz, a única coisa pior do que perder a saúde. Os transeuntes debochavam dele, ou resmungavam entre dentes nomes como patife, trapaceiro, cachorro, puto. Ele não teria sido tão odiado se não houvesse sido tão amado antes. Mas junto com o Rabino-Variedade-de-jardim e Sofiowka, era um dos vértices da comunidade – o vértice invisível – e com a vergonha sobreveio-lhe uma sensação de desiquilíbrio, um vazio.
Safran começara a percorrer as aldeias vizinhas, encontrando trabalho como professor de teoria e execução do cravo, consultor de perfumes (fingindo ser surdo e cego para alcançar alguma legitimidade face à falta de referências), e até um malsucedido empreendimento como o pior cartomante do mundo – Não vou mentir para você e dizer que seu futuro é cheio de promessas... Acordava toda manhã com o desejo de agir corretamente, de ser uma pessoa boa e significativa, de ser, por mais simples que isso pudesse parecer e impossível que fosse na realidade, feliz. E ao longo de cada dia o seu coração afundava, do peito para o estômago. No começo da tarde ele tinha a sensação de que nada estava certo, ou de que nada era certo para ele, e sentia o desejo de ficar sozinho. À noite ele se realizava: sozinho na magnitude de seu pesar, sozinho com sua culpa, difusa, sozinho até na sua solidão. Não estou triste, repetia ele sem parar, Não estou triste. Como se um dia pudesse se convencer disso. Ou se enganar. Ou convencer os outros – a única coisa pior do que ficar triste é deixar os outros saberem que você está triste. Não estou triste. Não estou triste. Pois sua vida tinha um potencial ilimitado para a felicidade, exatamente por ser um aposentado branco e vazio. Ele adormecia com o coração ao pé da cama, feito um animal domesticado que não fazia parte dele. E a cada manha acordava com o coração engaiolado novamente nas costelas, um pouco mais pesado, um pouco mais fraco, mas ainda bombeando. E lá pelo meio da tarde sentia novamente o desejo de estar em outro lugar, de ser outra pessoa, de ser outra pessoa que estivesse em outro lugar. Não estou triste.
Depois de três anos ele voltara ao shtelt – sou a prova definitiva de que todos os cidadão que partem acabam voltando – e passar a viver discretamente, feito uma franja dos desleixados costurada à manga de Trachimbrod, obrigado a usar aquela horrível conta em torno do pescoço, como marca de sua vergonha. Mudara seu nome para Yankel, o nome do burocrata que fugira com sua esposa, e pedira que ninguém jamais voltasse a chamá-lo de Safran (embora achasse que ouvia aquele nome de vez em quando, resmungado às suas costas). Muitos dos antigos clientes haviam voltado, e embora se recusassem a pagar as taxas do seu período de apogeu, ele conseguira se restabelecer no shtelt onde nascera – como todos os exilados acabavam por tentar fazer.
Quando os homens de chapéu preto lhe deram o bebê, Yankel sentiu que ele também era apenas um bebê. Com a chance de viver sem desonra, sem necessidade de consolo por uma vida vivida erradamente, a chance de ser novamente inocente, simples e impossivelmente feliz. Deu à menina o nome de Brod, em homenagem ao rio onde ela curiosamente nascera, e um pequeno cordão com uma diminuta conta de ábaco, para que ela jamais se sentisse deslocada no que seria a sua família.
A mãe da mãe da mãe da minha tataravó foi crescendo, sem se lembrar de nada, é claro, e nada lhe foi dito. Yankel inventou uma história a cerca da morte prematura da mãe dela – indolor, durante o parto – e respondia às muitas perguntas que surgiam do jeito que achava que causaria menos sofrimento à menina. Fora a mãe que lhe dera aquelas belas orelhas grandes. Era o senso de humor da mãe que todos os meninos admiravam tanto nela. Yankel falava das férias que ele e a esposa haviam passado (quando ela arrancara uma farpa do seu calcanhar em Veneza, quando ele fizera um desenho dela em lápis vermelho diante de um chafariz em Paris), mostrava-lhe cartas amorosas que os dois haviam trocado (escrevendo com a mão esquerda as da mãe de Brod) e a punha na cama com histórias do romance deles.
Foi amor à primeira vista, Yankel?
Eu me apaixonei pela sua mãe até antes disso – só pelo cheiro!
Conte novamente como ela era.
Ela se parecia com você. Era linda, com esses olhos que não combinam, feito você. Um azul e um castanho, feito os seus. Ela tinha os mesmos maxilares, e a mesma pele macia.
Qual era o livro predileto dela?
A Gênese, é claro.
Ela acreditava em Deus?
Nunca quis me dizer.
De que tamanho eram os dedos dela?
Deste tamanho.
E as pernas?
Assim.
Conte novamente como ela soprava no seu rosto antes de beijar você.
Bom, é isso mesmo, ela soprava nos meus lábios antes de me beijar, como se eu fosse uma comida muito quente e ela fosse me comer!
Ela era engraçada? Mais engraçada do que eu?
Ela era a pessoa mais engraçada do mundo. Exatamente como você.
Era bonita?
Era inevitável: Yankel se apaixonou pela esposa inexistente. Acordava de manhã e sentia falta do peso que jamais afundara a cama ao seu lado, lembrava-se detalhadamente do peso de gestos que ela jamais fizera, e ansiava pelo peso inexistente do braço inexistente dela no seu peito demasiadamente real. Sentia que a perdera. E realmente a perdera. À noite, relia as cartas que ela jamais lhe escrevera.

Queridíssimo Yankel,
Logo estarei ao nosso lar, e portanto você não precisa ter tantas saudades de mim, por mais doce que isso possa ser. Você é tão bobo. Sabe disso? Sabe o quanto você é bobo? Talvez seja por isso que eu amo você tanto, porque também sou boba.
Aqui é maravilhoso. É muito bonito, como você prometeu que seria. As pessoas me tratam bem, e eu estou comendo bastantee, coisa que só menciono porque você vive querendo saber se estou me cuidando. Bom, estou, de modo que não precisa se preocupar.
Sinto muita saudade de você. É quase insuportável. Penso na sua ausência quase todos os minutoss de todos os dias, e isso quase me mata. Mas é claro que logo voltarei a você, e não terei mas de sentir a sua falta, e você não terá de saber que algo, tudo, está faltando, que aquilo que está aqui é apenas o que não está aqui. Beijo meu travesseiro antes de ir dormir e imagino que é você. Isso parece algo que você poderia fazer, eu sei. Provavelmente é por isso que ajo assim.

A coisa quase funcionou. Ele já repetira os detalhes tantas vezes que era quase impossível distinguí-los dos fatos. Mas o bilhete real teimava em reaparecer, e ele tinha certeza de que era isso que o afastava daquela coisa simples e impossível: a felicidade. Precisava fazer isso por mim. Brod descobriu o bilhete um dia, quando tinha apenas alguns anos de idade. O troço se enfiara no bolso direito dela, como se tivesse uma mente própria, como se aquelas cinco palavras rabiscadas fossem capazes de querer infligir a realidade. Precisava fazer isso por mim. Ou ela percebeu a imensa importância daquilo, ou não lhe deu importância alguma, pois jamais tocou no assunto com Yankel. Mas colocou o bilhete na mesinha-de-cabeceira dele, onde ele o acharia à noite, após reler outra carta que não era da mãe dela, nem da sua esposa. Precisava fazer isso por mim.
Não estou triste.



'Tudo se ilumina', de Jonathan Safran Foer. RJ, Rocco, 2005. Tradução de Paulo Reis e Sérgio Moraes Rego. p.59-67






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