quinta-feira, 17 de março de 2011

carolina tristão & isolda

Será que ela é feliz


Será que ainda está sozinha
O vento diz que ainda é minha
Olho nos olhos ou nas linhas da mão
Será que é mesmo essa mulher
Será o amor
Será que é
Feito uma noite quando o dia chega
E cega devagar
Oh noite diz será que ela é feliz
Será aqui o seu lugar
Eu nem preciso procurar
Nos olhos ou nas minhas mãos
Será que some com a maré
Será o amor
Será que é
Será que volta quando o vento
Sopra devagar
Oh vento diz será que ela é feliz

Fróes

img: Florencia Alvarado

Nosso Tempo


I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.

IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.


Carlos

domingo, 13 de março de 2011

Tempo-Morte


Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vivida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.


Hilda
Canto I da sessão Tempo-Morte, em "Da Morte. Odes Mínimas"

Poemas aos Homens do nosso Tempo - XIII


Ávidos de ter, homens e mulheres
Caminham pelas ruas. As amigas sonâmbulas
Invadidas de um novo a mais querer
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca
Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:
E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa mais clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?

Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.


Hilda
em "Júbilo Memória Noviciado da Paixão", de 1974


roubada da erico erica, para stelinha.
e ama.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O afogado mais bonito do mundo


Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.
Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarma no povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e disseram que talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe os ossos. Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo.
Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispostas no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava.
Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres foram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado entre labirintos de corais. Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram consciência da classe de homens que era, e então ficaram sem respiração. Não era só o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, senão que, embora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação.
Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-lo, nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso quanto naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo, com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo de seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou:
__ Tem cara de se chamar Estêvão.
Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem fazer o que fazer com suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasando de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aquele que lhe diziam não se vá, Estêvão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com seus homens, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais Estêvão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da Terra, o mais manso, o mais serviçal, o pobre Estêvão. Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas.
__ Bendito seja Deus __ suspiraram: __ é nosso!
Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos tornozelos uma ancora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam por no afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve, olhe que quase me faz cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se zangar, desde quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens perderam a respiração.
Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estavam envergonhado, de que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como quem não que nada nas escarpas, para não andar agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão.
Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que se podiam conceber para um afogado considerado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no eu lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolve-lo órfão às águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizerem seus irmãos, tios e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância perderam a segurança do rumo, e se soube de que um se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o privilégio de carregá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estêvão pudesse andar por toda parte, sem bater nas traves, e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do Caribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estêvão.

Gabriel Garcia Marques
“A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada”, pág. 46 – 55.
Tradução de Remy Gorga, Filho
Editora Record, 22 edição.


domingo, 6 de março de 2011

morrer de vez em quando


já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma


Lmsk

carlos marcos


sexta-feira, 4 de março de 2011

A arte de viver para as novas gerações


"Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído enquanto durmo. Os meus gestos inacabados é que me perseguem, não o futuro da raça humana, nem o estado do mundo no ano de 2030, nem as hipotéticas possibilidades, nem as abstrações sinuosas dos futurologistas. (...) O que as outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou menor. A violência apocalíptica da nova geração - o seu desprezo pelos bens intercambiáveis expostos nas prateleiras dos supermercados da cultura, da arte, da ideologia - é uma confirmação concreta de que a realização individual será obra do cada um por si compreendido em termos coletivos - e acima de tudo de modo radical.

Um condicionamento fragmentário substitui a onipresença do condicionamento religioso. E o poder esforça-se por atingir, com grande quantidade de pequenos condicionamentos, a mesma efetividade na manutenção da ordem que era possibilitada anteriormente pelo condicionamento religioso. Isso significa que a coação e a mentira se individualizaram, cercam mais de perto cada indivíduo para melhor o transvasar em uma forma abstrata. Isso significa também que, de um ponto de vista - o do governo dos homens - o progresso dos conhecimentos humanos aperfeiçoa os mecanismos de alienação: quanto mais o homem se conhece pelos olhos da oficialidade, mais se aliena. A ciência é o álibi da polícia. Ela ensina até que ponto se pode torturar sem levar à morte, ela ensina acima de tudo até que ponto podemos nos tornar héautomorouménos, o respeitável carrasco de nós mesmos. Ela ensina como se tornar coisa conservando uma aparência humana.
Não é por meio da disseminação de idéias que o cinema ou sua forma individualizada, a televisão, consegue as suas mais belas vitórias. Em pouca coisa ela consegue dirigir a opinião. A sua influência se exerce de outro modo. De um palco de teatro, os personagens tocam o espectador pela linha geral da sua atitude e pela convicção da sua fala. Na tela grande ou pequena, o mesmo personagem se decompõe em uma série de detalhes precisos que agem sutilmente e separadamente sobre o olho do espectador. É uma escola de expressão corporal, uma lição de arte dramática na qual uma determinada expressão facial ou um movimento de mão traduzem o modo apropriado de exprimir um sentimento, um desejo... Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais tornam-se meios pelos quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos, oferecem uma série de modelos na qual cada um deve escolher um papel. (...) O homem-consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os quais modela seus diferentes comportamentos (lado ativo).
No extremo oposto da identificação absoluta está um modo de distanciar de nós mesmos o papel, de estabelecer uma zona lúdica, uma zona que é um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes à ordem espetacular. Nunca nos perdemos completamente em um papel. Mesmo invertida, a vontade de viver conserva um potencial de violência sempre capaz de desviar o indivíduo do caminho que ele traça. O lacaio fiel que se identifica com o senhor pode também estrangulá-lo em momento oportuno."

Pág 158


"(...) E o homem total nada mais é hoje que o projeto elaborado pela maioria dos homens em nome da criatividade proibida.
(...) Nada existe para descobrir, porque o mundo foi dado por toda a eternidade, mas a revelação espera o peregrino, o cavaleiro, o vagabundo nas encruzilhadas dos caminhos. Na verdade, a revelação existe em cada indivíduo: percorrendo o mundo, ele busca em si mesmo, busca-se ao longe, até repentinamente jorrar, como uma fonte mágica que a pureza de um gesto faz surgir no próprio lugar onde o perseguidor desprovido de graça nada teria encontrado."

Pág 161


"(...) Sob a dissociação existe a unidade; sob a fadiga, a concentração de energia; sob a fragmentação do eu, a subjetividade radical. (...)
Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de perspectiva. É nesse nível que nova teoria revolucionária deve se concentrar a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói uma fase clandestina de tática, a era do jogo.
O estado de degradação do espetáculo, as experiências individuais, as manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele possa se apoderar. Somente subnutrindo de alegria as massas revolucionárias é possível assenhorar-se delas, impedindo-as assim de ir mais longe e de ampliar as suas conquistas.

Não existe uma técnica ou um pensamento que não venha primeiramente de uma vontade de viver. Não existe uma técnica ou um pensamento oficialmente aprovado que não incite a morrer. Os vestígios do abandono são os símbolos da uma história ainda mal conhecida pelos homens. Estudá-los é já forjar as armas da superação total. Onde se encontra o núcleo radical, o qualitativo? Essa é a questão que entra na estratégia da superação, na construção de novas redes de resistência radical. Isso vale para a filosofia: a ontologia testemunha o abandono do ser-como-devir. Isso vale para a psicanálise: técnica de libertação que liberta sobretudo da necessidade de atacar a organização social. Isso vale para os sonhos e desejos roubados, violados, falsificados pelo condicionamento. Isso vale para a natureza espontaneamente radical dos atos espontâneos de um homem, e que é contradita na maior parte do tempo pela visão de si mesmo e do mundo. Isso vale para o jogo, cuja atual restrição a categorias de jogos lícitos - da roleta à guerra, passando pelos linchamentos - não deixa espaço para se jogar autenticamente com os momentos da vida cotidiana. E isso vale para o amor, inseparável da revolução e tão pobremente separado do prazer de dar...

(...) a origem de toda criação reside na criatividade individual. É a partir desse ponto que tudo se ordena, os seres e as coisas, na grande liberdade poética. Esse é o ponto de partida da nova perspectiva, pela qual não existe ninguém que não lute com todas as forças e a cada instante da sua existência.(...)
Nos laboratórios de criatividade individual, uma alquimia revolucionária transforma em ouro os metais mais vis da vida cotidiana. Trata-se antes de tudo de dissolver a consciência das coações, ou seja, o sentimento de impotência por meio do exercício sedutor da criatividade: derretê-los no impulso criador, na afirmação serena do seu gênio. A megalomania, tão estéril no plano da corrida por prestígio no espetáculo, representa nesse caso uma fase importante na luta que opõe o eu às forças coligadas do condicionamento.Na noite do niilismo que atualmente nos envolve, a fagulha criadora, que é a centelah da verdadeira vida, vive com mais fulgor. E enquanto o projeto de uma melhor organização da sobrevivência é abortada, existe, na multiplicação dessas fagulhas que pouco se fundem em uma única luz, a promessa de uma nova organização baseada dessa vez na harmonia das vontades individuais. O devir histórico nos conduziu à encruzilhada na qual a subjetividade radical encontra a possibilidade de transformar o mundo. Esse momento privilegiado é a inversão de perspectiva.

Aqui a poesia é claramente a ação que gera novas realidades, a ação de inversão de perspectiva. A matéria-prima está ao alcance de todos. São poetas aqueles que sabem como usá-la, que sabem empregá-la eficazmente. Além disso, 2 centavos de um material qualquer não é nada se comparado com a profusão de energia sem igual disponibilizada pela vida cotidiana: a energia da vontade de viver, do desejo desenfreado, da paixão do amor, do amor das paixões, a força do medo e da angústia, o furacão do ódio e o ímpeto selvagem da fúria de destruir. Que transformações poéticas não podemos esperar de sentimentos tão universais experimentados como aqueles associados à morte, à velhice e à doença? É dessa consciência ainda marginal que deve partir a longa revolução da vida cotidiana, a única poesia feita por todos, e não por um.

A criatividade, que nem a autoridade dos senhores nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará diante das necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de uma forma abstrata, um sistema, do que para do que para a execução de senhores odiados.
... o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro de seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso a serem liberados, ele já possuiu. É dele mesmo que tira a força e paixão. Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo que a ele se opõe, do mesmo modo que, em uma fita magnética, uma gravação apaga a outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência inssurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a sua impaciência em negar-se, do mesmo modo que é impaciente em executar a sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma.

... três paixões predominantes na destruição da ordem reificada.
A paixão pelo poder absoluto: uma paixão que se exerce sobre os objetos colocados imediatamente a serviço dos homens, sem a mediação dos próprios homens. A destruição, portanto, daqueles que se agarram à ordem das coisas, dos escravos possuidores das migalhas do poder. “Porque já não suportamos o seu aspecto, suprimimos os escravos” (NIETZSCHE).
A paixão de destruir as coações: de quebrar os grilhões. Como diz Sade “podem os prazeres permitidos comparar-se aos prazeres que reúne não somente atrativos muito mais picante mas também o prazer que não tem preço de quebrar os tabus sociais e derrubar todas as leis ?”
A paixão de corrigir um passado infeliz: de reaver e realizar esperanças frustradas, tanto na vida pessoal quanto na historia das revoluções esmagadas.
(...)
O prazer de derrubar o poder, de ser senhor sem escravos e de corrigir o passado concede à subjetividade de cada individuo um lugar preponderante. No momento revolucionário, cada homem é convidado a fazer a sua própria história. A causa da liberdade de realização, deixando ao mesmo tempo de ser uma causa, abraça sempre a subjetividade. Só essa perspectiva permite a embriagues das possibilidades, subir ás alturas vertiginosas onde todos os prazeres são postos ao alcance de todos.
Deve-se cuidar para que a velha ordem das coisas não desabe sobre a cabeça de seus demolidores. A menos que se construa abrigos coletivos contra o condicionamento, contra o espetáculo e contra o espetáculo e a organização hierárquica, existe um perigo real de que a sociedade de consumo nos carregue junto com ela na sua queda final. Desses abrigos devem partir as futuras ofensivas. As micro-sociedades atualmente em gestação vão realizar o projeto dos senhores antigos libertando-o de seu cancro-o hierárquico. A superação do “grande senhor e do homem cruel” aplicara ao pe da letra o admirável principio de Keats: “tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão”. Essa superação deve ser operada simultaneamente em três esferas: a) a superação da organização patriarcal; b) a superação o poder hierárquico; c) a superação da arbitrariedade do capricho autoritário."

Trechos do texto "A arte de viver para as novas gerações", de Raoul Vaneigem

da palavra


“ – Gostaria que entendesse que eu e você partimos da mesma desilusão. Os mesmos que quiseram reformar a fé e a Igreja reformaram também o velho poder, deram-lhe uma nova máscara. As esperanças de vocês, anabatistas, eram legítimas: desmascarar Lutero e prosseguir de onde ele havia parado. Mas a visão que vocês tinham da luta fazia com que dividissem o mundo em branco e preto, cristão e anticristão. – Abana a cabeça. – Uma visão dessas serve para vencer uma batalha justa, mas não basta para conquistar a liberdade do espírito. Pelo contrário, pode construir novas prisões da alma, nova chantagem moral, novos tribunais. (...) A diferença entre um papa e um profeta está somente no fato de que eles contendem, um perante o outro, pelo monopólio da verdade, da palavra de Deus. Eu penso que aquela palavra, cada um deve encontra-la por si. "

Elói, em 29 de maio de 1538

Q, O Caçador de Hereges, Luther Blisset

Hai Kai


HAI

Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me,
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.

KAI

Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.

De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.

A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.

Lmsk