sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Mensagens nos Balões

André Forastieri

Domenico de Mais diz que fracassou na vida. Porque trabalha nove meses por ano e passa três tomando vinho, lendo e conversando. Seu sonho é que a proporção fosse contrária.

“Tudo que você precisa para mistificar o mundo é dinheiro e imaginação.”
“Tranqüilamente. Mas isso faria parar o comichão? Ou seria só um outro projeto grande e excitante para fazer você ignorar o que realmente quer? Você quer ser livre como nós? O que você sentiria se fosse livre?” (The invisibles, nº 22, fevereiro de 1999)

Leio quadrinhos obsessivamente desde os quatro anos de idade. Universitário, comi pão com ovo e ketchup mil vezes, poupando para bancar meus gibis gringos. Não era questão de coleção: eu queria só ler o máximo de gibis mesmo. Até os 23 anos não conhecia ninguém que gostasse de quadrinhos como eu. Quando descobri que outras pessoas sabiam quem eram Hal Foster, Gil Kane e os Desafiadores do Desconhecido, caí pra trás. Quatro meses depois tinha uma coluna semanal sobre quadrinhos na Folha de S. Paulo. Leio de tudo um pouco, mas gosto mesmo é de gibi americano bem careta mesmo, como Batman, X-men, Hellblazer. Sou mais fiel a roteiristas que a desenhistas. Não compro edições raras ou assinadas e mesmo assim continuo gastando mais do que devia com quadrinhos. Hoje, quase nenhum moleque lê quadrinhos. A relação “preço-diversão por minuto” é muito alta. Pelo preço de um gibizinho merreca que se lê num tapa dá pra ficar duas horas num cinema ou alugar um videogame sensacional por dois dias.
Vou ler gibi até morrer ou até eles acabarem, o que acontecer primeiro. Tenho paixão. Mais: descubro mensagens secretas nos balões, codificadas só pra mim e, quem sabe, outros fanáticos. A verdade é está lá dentro. Descobri uma boa definição para minha relação com HQ outro dia: “Aficionado é quem supergasta em uma categoria e subgasta em outras”. Quando abro o gibi, sinto o contrário do que quando abro um jornal. O jornal, a Veja, a CNN – é tudo mentira e mistificação. No mundo dos gibis, os heróis voam, soltam raios pelos olhos e movem planetas. O mundo das notícias é bem mais irreal: Itamar destruiu o real, o crime caiu, a bolsa subiu, foi tudo por uma boa causa, vai passar. Aquela história de que o jornalismo se faz de más notícias (porque as boas notícias são a publicidade e é preciso um equilíbrio crível) foi para o saco. O mundo das notícias me irrita porque onde eu vivo a cerveja nunca é tão gelada quanto no comercial; a celulite resiste ao creminho; a dor dói; o orgasmo acaba; o herói morre no final.
Hoje o símbolo é mais importante que a realidade. Repetido um zilhão de vezes, sobrepuja o real. E quanto mais irreal mais poderoso e importante. Um círculo vicioso e pornográfico.
Isso é mágica: atuar nos símbolos para fazer os outros verem o que você quiser e fazerem o que você disser. Uns fazem desenhando super-heróis.
Outros fazem dando entrevistas, como Domenico de Mais no programa Roda Viva.
O sociólogo italiano disse que os últimos anos foram marcados pela guerra dos pobres contra os ricos. Agora é a vez dos ricos contra os pobres. Sem culpa nem constrangimento. O partido do possível e do provável tomou a ofensiva contra o partido da imaginação.
Nessa guerra Fernando Henrique Cardoso é coronel. Governa como o regime militar que combatia, as mesmas saraivadas de medidas provisórias e os mesmos objetivos. As críticas que recebe por inoperância e indecisão não procedem. Sua desconversa preguiçosa ofusca uma guerra de extermínio.
Fez mais em quatro anos pelo seu lado que os milicos em trinta de ditadura.
Numa guerra contra os trabalhadores, a primeira medida é tornar o trabalho desimportante, desorganizado, barato e chato. A segunda é impedir que os pobres tenham acesso às armas que importam: dinheiro, imaginação de ponta e um sentido do impossível.
A revolta dos pobres se dava no território do trabalho. Os ricos escolheram outro campo de batalha: o lazer. Brilhante. Você acreditaria que quase 50 por cento do PIB americano é ligado de alguma forma aos segmentos de entretenimento e recreação? O número é do futurista profissional e guru do marketing Waltts Wacker, que ilumina a questão em The 500-year Delta: What Comes After What Comes Next, editado pela Harper Business nos Estados Unidos.
Whacker propõe o seguinte exercício. Imagine a casa de uma família de classe média em 1950. Agora imagine as casas de uma família de classe média em diferentes países: Brasil, EUA, Japão, Filipinas, Rússia.
Agora imagine essas casas e essas famílias hoje. Percebeu? Você imaginou todos vestindo roupas parecidas. Imaginou televisão, geladeira, microondas, a garota de batom, o moleque de boné. Hoje há uma uniformidade material internacional, uma uniformidade de estilos de vida (e, mais importante, uniformidade de ambições por causa da uniformidade de símbolos). Japoneses, sudaneses, brasileiros ajoelhamos na frente das mesmas imagens.
O feitiche número um, claro, é grana – não dinheiro de verdade para gastar de verdade, - a idéia de grana. Um símbolo da liberdade além das responsabilidades, um desejo infantil de proteção sem consciência.
Essa grana virtual de comercial de televisão não traz a felicidade, manda buscar na frente dos vizinhos. A idéia é justamente essa. Mas só vale à pena ter um Rolex e uma BMW se ninguém no bairro tiver.
Wacker traduz: em um período de uniformidade material, as únicas coisas que realmente têm valor são as diversidades intelectual e espiritual; essas diversidades devem ser objetificadas; quando muitos têm a mesma coisa, a escassez determina o valor. Os atributos, os objetos e interesses que só você tem criam sua identidade: “Em um período de mudanças e caos, se tornar um aficionado é uma maneira de descobrir um foco, de alcançar um equilíbrio”.
Faz sentido e banca minha velha tese da época da revista Herói: todo mundo é nerd. Todo mundo tem obsessões. Todo mundo é colecionador. E todo colecionador tem certeza de que é especial. O que ficou bem mais claro agora é o porquê. E a chave de tudo: é o que você faz nas horas vagas que te define, não o que você faz no trabalho (até porque o trabalho não faz sentido, não pode fazer, sua desvalorização é a arma número um da nova guerra).
É na sua hora de lazer que você imagina quem você é. O que faz de você o que é, é você recitar o Santos de 1962, jogar truco, escrever cartas para colegas de colegial, juntar caixas de fósforos, restaurar fotos antigas, caçar LPs de punk rock em vinil, ler todo o Proust, colecionar bookmarks sobre UFOs, ver todos os filmes de Rocco Siffredi e do Jackie Chan, as manias estranhas, as taras cotidianas.
Em que você gasta mais tempo e dinheiro que “devia” – e ninguém consegue entender o porque? Que sensação, que significado você tira disso? Como fazer isso te liberta? O que isso diz sobre você?
Domenico de Masi diz que fracassou na vida. Porque trabalha nove meses no ano e passa três na costa amalfitana, tomando vinho, lendo e conversando com os amigos (o que isso diz sobre ele?). Seu sonho é que a proporção fosse contrária. Quer dizer: o cara que é um visionário do trabalho acha sacanagem não folgar nove meses por ano. Entendeu?
Está certíssimo ele. Está na hora de descobrir o que é ser livre e mandar as regras pra puta que pariu. Não adianta brigar pra Ford te readmitir, para a escola te preparar, para o mercado te aceitar – nada virá de bom no domínio do possível e do provável. Como diz o cara lá de cima, tudo o que você precisa é de dinheiro e imaginação. O problema é que na nova guerra todo dinheiro está de um lado; e oposição está com pouca imaginação. A questão é: se você ganhar dinheiro, de que lado da guerra irá combater? E eu?
Leio gibi como quem consulta um oráculo bebendo cerveja. The invisibles 22: “Tiramos papeizinhos de dentro de um chapéu. Ganhamos novas personalidades e novos papéis. As regras mudaram de repente. É fácil assim ser uma nova pessoa. O que você quer ser de verdade? ... Você tem um lar, negócios, responsabilidades... por isso você não pode mudar? Largue tudo isso, delegue. Depois que você começa fica fácil. Tá, não é fácil mudar o que sou, mas é fácil mudar o que eu faço – é quase a mesma coisa...”.
“O que acontece depois? Ora, um passarinho começa a cantar e você lembra da sua casa e das suas obrigações e como não dá para escapar disso tudo e como parece difícil mudar qualquer parte de sua vida.”
“E então tudo muda como sempre muda.”

André Forastieri é diretor da Conrad Editora.
Caros Amigos, nº 23, fev 1999.

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