sábado, 26 de janeiro de 2008

amar o amor




"Apesar das dificuldades da minha própria história, apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor.
Todos os argumentos que os sistemas mais diversos empregam para desmistificar, limitar, apagar, enfim, depreciar o amor, eu os escuto, mas me obstino: "sei bem, mas contudo...".
Transfiro as desvalorizações do amor para uma espécie de moral obscurantista, para um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo "o que não vai bem" no amor, a afirmação do que vale nele.
Essa teimosia é o protesto de amor: debaixo do concerto de “boas razões” para amar de outro modo, amar melhor, amar sem estar apaixonado etc., uma voz teimosa me faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do intratável apaixonado.
O mundo submete todo empreendimento a uma alternativa; a do sucesso ou do fracasso, da vitória ou da derrota.
Protesto por uma outra lógica: sou ao mesmo tempo e contraditoriamente feliz e infeliz:
"conseguir" ou "fracassar" têm para mim sentidos apenas contingentes, passageiros (o que não impede que minhas dores e meus desejos sejam violentos); o que me anima surda e obstinadamente não é tático: aceito e afirmo fora do verdadeiro e do falso, fora do êxito e do malogro; estou destituído de toda finalidade, vivo conforme o acaso (a prova é que as figuras do meu discurso me vêm como lance de dados).
Confrontado com a aventura (aquilo que me ocorre), não saio nem vencedor nem vencido: sou trágico. (dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Porque o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?)."

Roland Barthes
Fragmentos de um discurso amoroso

delicatessen


"E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las?"

Hilda


img: caravaggio

terrorismo poético


Dançar de forma bizarra durante a noite inteira nos caixas eletrônicos dos bancos. Apresentações pirotécnicas não autorizadas. Land-art (2), peças de argila que sugerem estranhos artefatos alienígenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos Poético-terroristas. Seqüestre alguém & o faça feliz. Escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil e impressionante fortuna - digamos, cinco mil quilômetros quadrados na Antártica, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia. Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência. Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc. Fique nu para simbolizar algo. Organize uma greve na escola ou trabalho em protesto por eles não satisfazerem a sua necessidade de indolência & beleza espiritual. A arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô & sóbrios monumentos públicos - a arte - TP também pode ser criada para lugares públicos: poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques & restaurantes, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carrosestacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas destinatários previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal), transmissões de rádio pirata, cimento fresco... A reação do público ou o choque-estético produzido pelo TP tem que ser uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror - profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta - não importa se o TERROR POÉTICO é dirigido a apenas uma pessoa ou várias pessoas, se é "assinado" ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou. O TP é um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltronas, sem ingressos ou paredes. Para que funcione, o TP deve afastar-se de forma categórica de todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia). Mesmo as táticas de guerrilha Situacionista do teatro de rua talvez já tenham se tornado conhecidas & previsíveis demais. Não faça TP para outros artistas, faça-os para aquelas pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você fez é arte... Vista-se de forma intencional. Deixe um nome falso. Torne-se umalenda. O melhor do TERRORISMO POÉTICO é contra a lei, mas não seja pego.

Hakim Bey

312


"Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ansia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a amgia de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciencia da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.
Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscencias de qualquer outro mundo que houvessemos estado - reminiscencias cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem, se a soubessemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que d'eles somos, de uma maneira incompleta - perdida a solidez e nós figurando-no-la mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se abraçam em visão - tudo isso pesa como uma condenação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isso é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gstos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anonimo de todos os sentimentos. Nestas horas de magua subtil, tornase-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser heroe, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na idea de que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensivel, meros sons de silabas sem forma no entendimento. A vida é ôca, a alma é ôca, o mundo é ôco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vacuo. É todo um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sêde, ejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideas - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Pedeu-se o mundo. E no fundo da minha alma - como unica realidade deste momento - há uma magua intensa e invisivel, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro."

Bernardo Soares

img: mondo guigui/livros do mal

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

" Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "Vem por aqui"
Eu olho-os com olhos lassos
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços.
E nunca vou por ali (...)
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos (...)
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada. (...)
Ide! Tendes estradas
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios (...)
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí! "

José Régio

Passeio


1
Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.

2
Lenta será minha voz e sua longa canção.
Lentamente se adensam essas águas
Porque um todo de terra em mim se alarga.

E de constância e singeleza tanta,
Meus mortos hoje sobre um chão de linhos
Por algum tempo guardarão meu ritmo
Nos ouvidos da terra. De granito.
Pude aclarar a sombras nos oiteiros
E aquecer num sopro o vento da tarde.
Mas não vereis ainda meus prodígios
Porque haverá lideiras neste outono
E vossos olhos estarão por lá
Desocupados do sono, extremados
Para uma só visão num só caminho.

3
Quisera descansar as mãos
Como se houvesse outro destino em mim.
E castigar as falas, alimárias
Vindas de um outro mundo que não sei.
Fazê-las repetir suas longas árias
Até que a morte silencie as mandíbulas
Claras.

4
Caminho. E a verdade
É que vejo alguns portais
E entre as grades uns pássaros a leste.
Não sabem de seus passos os meus pés
Nem de mim mesma sei

Mas tantas timidizes se esvaíram
E este meu corpo agora não as tem.

E atravessando os mármores e os muros
Como se fossem mais muros de vento,
Passeio nos jazigos
E um cordeiro de pedra eu apascento.

5
Também nos claros, na manhã mais plena,
A retina ferida nesse vôo que passa além do verde,
É sempre a morte o sopro de um poema.
Entre uma pausa e outra ela ressurge
Ilharga de sol. Ah, diante do efêmero
Hei de cantar mais alto, sem o freio
De uns cantares longínquos, assustados.

6
As aves eram brancas e corriam na brancura das lajes.
As aves eram tantas e sabiam do seu corpo de ave.

Esguias e vorazes consumiam
Os corpos que eram aves menos ágeis.
E as garras assombradas dividiam
As espessuras ínfimas da carne.

Na plumagem umas gotas de sangue
Dos corpos devorados se entrevia.
Mas da vida e do sangue não sabiam
As aves que eram tantas sobre as lajes.

O ritual sincopado das gargantas
Tinha o ruído oco de umas águas
Deitadas bem de leve em algum cântaro.
Todo o espaço se enchia desse canto
E atraía umas aves, outras tantas.

A face do meu Deus iluminou-se.
E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.
É uno em seus opostos, água e fogo
Têm a mesma matéria noutro rosto.
Alegrou-Se meu Deus.
Dessa morte que é vida, Se contenta.

7
O Deus de que vos falo
Não é um Deus de afagos.
É mudo. Está só. E sabe
Da grandeza do homem
(Da vileza também)
E no tempo contempla
O ser que assim se fez.

É difícil ser Deus
As coisas O comovem.
Mas não da comoção
Que vos é familiar:
Essa que vos inunda os olhos
Quando o canto da infância
Se refaz.

A comoção divina
Não tem nome.
O nascimento, a morte
O martírio do herói
Vossas crianças claras
Sob a laje,
Vossas mães
No vazio das horas.

E podereis amá-lo
Se eu vos disser serena
Sem cuidados,
Que a comoção divina
Contemplando se faz?

8
Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente mas sempre um tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não sei.
Será como pensardes ou como é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, sim
Eram muitos em mim.
O perigo maior de conviver era o perigo de todos.
Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo
E mesmo assim mantido. Nosso pranto
Continuadamente sem ouvido
Porque não é missão de divindade
Testemunharo pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicado
De umas tardes, a pureza das aves
Os peixes de verniz
Na abertura mais funda de umas águas.

(...)"


Hilda


img: Marci Washington
"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."


Hilda