domingo, 21 de novembro de 2010

presente


é uma sensação inexplicável:








(de vazio incalculavel)


o telefone chamando,
onde estará você e sua voz?

ainda que eu peça, diga:
me diga, diga.

nem eu sei das palavras e a palavras sempre foram vazias.

aqui está eu:
eu te vejo:
beijo seus grandes olhos:
me afundo dentro do escuro dos seus grandes profundos olhos:


e não há nunca o final,

que nunca houve.

os olhos estão cheios de mágoas.
o corpo pesa.
e ainda assim,


escrito em 7 de março de 2008, às 5h10

mare orientale




1.
O que dizer?

Que teu cheiro continuaria em minhas mãos
Se não houvesse água e necessidade de tomar banho?
Que teu sorriso interminável continua na memória,
Resistindo contra o esquecimento resultando de lugares à meia luz?
Nem insistirei em baterme com tal limitação, pois nada
Do que dissesse alçaria voo a ponto de superar lembranças:
Dias de chuva seguidos dum domingo luminoso do cheiro
Da carne, sons sonhados nos ouvidos toda a noite.
A sensação de novamente descobrir um continente,
O riso para sempre perdido num canto de lábio.
Penas de pássaro em tua nuca, e pés, e covas.
(...)
Sem que nuncacabe.
Nuncacabe.

O que dizer?

2.
Na parte em que não te toca o sol
Te tocarei eu, enfim. Entrededos como
Fêmur em carne e remo n'agua

Rumo ao extremo de ti
Em busca de mim.


Joca Reiners Terron, Mare Orientale





talvez seja agora o tempo dessas todas palavras. da vez que insisti em dizelas, no papel amassado - tantas vezes dobrei, tantas desdobrei, sem coragem de entregar -, era tempo nebuloso, de incerteza.. agora sendo tempo de saudade real, de distancia no tempo, no espaço, talvez seja hora de encontrar as lembranças há muito perdidas no caderno, e redizelas, como antes, dentro do abraço, e ao pé do ouvido.....: saudade

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Edward del Rosario









As pequenas memórias

"Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer onde eu nasci tivesse sido conseqüência de um equívoco do acaso, de uma casual distração do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora úmido, composto de restos vegetais e animal, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida, e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que eu sabia, que nos ilegíveis fólios do destino, e nos cegos meandros do acaso, havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer."

Pág 11



"Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mais expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas, por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Não sabe que há poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado, ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?


(...)

Tu estavas, avó, sentada na soleira de tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e árvores assombradas e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: “o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Assim mesmo. Eu estava lá."

Pág 120


Trechos do livro "As pequenas memórias", do grande José Saramago, que deus o tenha, amém.