domingo, 9 de dezembro de 2007




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quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lucas, Naim

Te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres; como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras, a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.

Hilda:

terça-feira, 13 de novembro de 2007

laisser faire laisser passer

1.
o neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

2.

o neoliberal
neolibera
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?
a ex-comunhão dos ex-clusos?
o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

3.
no céu neon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:

enquanto o não
- neoliberado
come pão
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-
mansão em miami

4.

o centro e a direita
(des)conversam
sobre o social
(questão de polícia):
o desemprego um mal
conjuntural
(conjetural)
pois no céu da estatís-
tica o futuro
se decide pela lei
dos grandes números

5.
o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de
banqueiros
- banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.

6.
(a
contramundo
o mundo-não
-mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
sub-servis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus mamonas)

7.
o neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes coronéis políticos
milenaristas (cooptados) do perpétuo
status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre - festa estática
(ainda que sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)


haroldo

mas apenas e antigamente guirlandas sobre o poço

"Não farei um movimento para afastar os cadáveres que juncam as águas do lago não farei um movimento para conduzir o barco em direção ao sul pois sei que existem ventos e que os ventos sopram sei que se uma folha bater de leve no meu rosto eu a esmagarei feito mosca e sei que se houver cirandas pelas margens eu matarei as crianças sei do meu ser de faca sei do meu aprendizado de torpezas sei do que há no fundo desse lago e sei que você não o tocará porque a superfície não o revela e será mais fácil para o teu gesto afastar os cadáveres que juncam as águas de teu próprio lago e movimentar o barco a favor do vento e acolher as folhas que baterem em teu rosto e ouvir as cirandas e sorrir para as crianças paradas nos beirais sei da tua forma de chegar à morte sei da minha forma de chegar à vida e sei que não te tocarei no campo de trigo atrás de tua face e sei do nosso mútuo assassinato e sei de nossa insaciável fome de carne humana porém te digo que este meu ser inaparente que este meu ser é de faca e não de flor."

caio

Do desejo



I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

II
E por que haverias de querer minha alma
na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. e te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. obriga-me.


III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


IV

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

V

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


Hilda


img_schiele
pego a palavra no ar

no pulo raro

vejo aparo burilo

no papel reparo

e sigo compondo o verso



Chacal

O guardador de rebanhos


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?



Alberto


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Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Alvaro

VI

Chora de manso e no íntimo.. procura.
Curtir sem queixa
o mal que te crucia.
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua aventura...
A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e de alma sobranceira
Se um grito sequer, tua desgraça
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua e constante companheira.


leminski

Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
[ extático da aurora.


Vinicius
Quando fico de pau duro
Sinto-me Deus
Não Deus como Zeus no Olimpo
Deus como Jesus
Como o homem no garimpo ao achar a maior pepita
Como o médico que o cardíaco ressuscita
Sinto-me Deus
Sinto-me forte
Sinto o poder
Toda a grandeza de ser de um povo
Sinto-me um ovo fecundado
Como um viado ao dar o rabo
Sinto-me alado
Sinto-me sábio
Sinto-me luz cuspida de meus lábios
Sinto a explosão dos teus
Quando me coloco Deus
No meio de tuas pernas


Cazé Peccini

Amor


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Clarice Lispector


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.


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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Anatomia Labial


Só penso em sua boca.
Não é uma boca convencional, e dista muito de ser
perfeita. É gordinha, pálida, e, entreaberta, oferece duas
superfícies de coloração diferente.
O lábio superior, delgado, se encarrega das recusas.
O lábio inferior, sangrante, é o hospitalário, e às vezes
enloquece e adquire uma lenta sabedoria, convertida
em perdurável sensação de queimadura, capaz de
iluminar meus momentos desassossegados.
Reconheço e assumo com dor o fato de que ambos os
lábios, num tempo tão próximo, são para mim um reino
perdido. A mim só me resta olhar de longe o lábio
superior. O inferior é o paraíso do qual fui vergonhosa e
irremediavelmente expulso.

por Hugo Gutierrez Vega
tradução de Affonso Romano de Sant'Anna

Img: Katy Smail
www.fecalface.com

Adoração Noturna

É como um olhar,
como um olhar imóvel.
Beijam-me quando assim me tomas,
admirados
de que não repila a comiseração:
'não é a que tem desejos e sandálias?'
Vossos pés me ocupam, vossos dedos
cuja perfeição esgota a eternidade.
Quem mais adora quando me arrebatas?
Meus sapatos são vossos,
de ouro,
iguais são nossos joelhos,
as rótulas sobre as quais
- eu, ou vós? - descansamos as mãos.
Necessária como Deus,
coberta de meus pecados resplandeço.

por Adélia Prado

terça-feira, 22 de maio de 2007

urango



por liandu monteiro

Política da arte

por Jacques Rancière

Introduzirei meu tema com três exemplos, três manifestações contemporâneas da política da arte que me parecem significativas.

A primeira é extraída do universo da arte pública, a arte que se inscreve na paisagem da cidade e da vida em comum, distinta da que é vista nos museus. Há alguns anos vem se desenvolvendo uma nova forma de arte pública: uma arte que intervem em lugares mais ou menos marcados pelo abandono social e pela violência, e que age modificando a paisagem da vida coletiva no sentido de restaurar uma forma de vida social. Assim, há dois anos, na França, uma fundação belga recompensou um projeto apresentado pelo grupo de artistas franceses “Acampamento urbano”. O projeto se denominava “Eu e nós” e consistia em edificar, num bairro particularmente difícil do subúrbio parisiense, uma nova forma de espaço público. Eu cito: “um lugar inútil, extremamente frágil e não produtivo”. Este lugar deveria ser acessível a todos e ficar sob a guarda de todos. Mas ele só podia ser ocupado por uma pessoa a cada vez e devia permitir, assim, “ o recolhimento de um Eu possível no Nós”.

Meu segundo exemplo nos remete ao espaço do museu e da exposição. Trata-se do privilégio concedido em várias exposições contemporâneas à chamada fotografia objetiva. Uma obra fotográfica parece emblematizar de modo particular essa tendência: trata-se das torres de reservatório d’água, dos altos-fornos e outras construções industriais fotografados segundo um protocolo imutável por Bernd e Hilla Becher.

Meu terceiro exemplo será encarregado da transição entre o museu e o seu exterior. Na última Bienal de São Paulo podia-se assistir a uma instalação de vídeo realizada pelo artista cubano Rene Francisco. Este artista havia utilizado a verba concedida por uma fundação artística numa pesquisa nos bairros pobres de Havana. Em seguida, ele selecionou um casal de velhos e decidiu, com a ajuda de amigos artistas, refazer as instalações da casa deles. A obra nos mostrava uma tela de tule na qual a imagem impressa do casal de velhos olhava para a tela do monitor em que nós podíamos ver os artistas trabalhando como pedreiros, pintores ou bombeiros.

Percebe-se o que une esses exemplos. Todos três dizem respeito a questões de lugar, construção e habitação. Todos três definem uma determinada relação entre o dentro e o fora, que também é uma determinada relação entre arte, trabalho e distribuição do espaço social. Todos três nos lembram que a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política.

Retornemos desse ponto de vista a meu primeiro exemplo. O projeto recompensado pela fundação artística não remete a nenhuma arte em particular. Ele apresenta a pura idéia da arte como recorte de um lugar comum, poder-se-ia dizer, no sentido forte do termo, um senso comum. “Eu e nós” soa como uma abreviação da universalidade subjetiva kantiana do juízo de gosto. E o lugar apartado que ele define, bem poderia ser a última forma de um tipo de espacialização da arte surgido mais ou menos na mesma época que o conceito de estética, que é também a época da Revolução Francesa. Isto é, o museu, um lugar onde visitantes solitários e passivos vêm encontrar a solidão e a passividade de obras despojadas de suas antigas funções de ícones da fé, de emblemas do poder ou de decoração da vida dos Grandes.

É o que significa a palavra “estética”. A estética não designa a ciência ou a filosofia da arte em geral. Esta palavra designa antes de tudo um novo regime de identificação da arte que se construiu na virada do século XVIII e XIX: um determinado regime de liberdade e de igualdade das obras de arte, em que estas são qualificadas como tais não mais segundo as regras de sua produção ou a hierarquia de sua destinação, mas como habitantes iguais de um novo tipo de sensorium comum onde os mistérios da fé, os grandes feitos dos príncipes e heróis, um albergue de aldeia holandesa, um pequeno mendigo espanhol ou uma tenda francesa de frutas ou de peixes são propostas de maneira indiferente ao olhar do passante qualquer, o que não quer dizer à totalidade da população, todas as classes confundidas, mas a esse sujeito sem identidade particular chamado “qualquer um”.

O lugar solitário proposto à meditação de um eu qualquer no nós dos subúrbios deserdados é claramente um herdeiro desse espaço paradigmático da estética. É um museu esvaziado de toda obra e conduzido à igualdade indiferente que é seu princípio.

Mas existem duas maneiras de tratar essa igualdade. A primeira é resumida na obra de Pierre Bourdieu chamada “ A Distinção”. Essa maneira consiste em desmistificar a indistinção – ou a “igualdade” – estética, fazendo dela um simples biombo destinado a dissimular a realidade da distinção, a realidade da incorporação social dos juízos de gosto e do mercado de bens simbólicos. Este tipo de desmistificação certamente assegura uma aliança a baixo custo entre progressismo científico e progressismo político. Mas, somente ao preço de fazer esvaecer seu objeto. A crítica político-científica da ilusão estética faz desasparecer algo crucial: existe uma política da estética – que não é uma ilusão de filósofos cândidos – mas uma realidade bi-secular, encarnada nas instituições da arte, nas formas materiais da sua visibilidade, nos olhares e julgamentos que nos permitem discerni-la e até mesmo nas teorias científicas e políticas que pretendem nos dizer a verdade sobre a ilusão estética. É portanto mais interessante deixar de lado o conforto barato dos desmistificadores para estudar diretamente essa forma singular de liberdade e igualdade que a estética vinculou à própria identificação da arte. Portanto, no lugar de denunciar a ilusão estética, vale à pena examinar o paradoxo que estrutura o regime estético da arte e sua política. Este paradoxo é a constituição de um senso comum paradoxal, um “senso comum” que é político na medida em que ele é sede de uma indiferença radical.

Essa política da indiferença poderia ser resumida na encenação discursiva de uma estátua decaptada, apresentada na Alemanha trinta anos antes da decaptação revolucionária do rei da França. Estou falando da descrição feita por Winckelmann do Torso do Belvedere, a estátua de um herói, despojada de tudo que caracterizava o regime representativo da expressão artística: sem rosto para expressar um sentimento, sem boca para manifestar uma mensagem, sem membros para comandar ou executar ação alguma. Winckelmann decidiu que se tratava de uma estátua de Hércules. Mas de um Hércules bastante particular: por um lado, toda a identidade espiritual do herói dos Doze Trabalhos devia estar concentrada na parte do corpo que já não expressa sentimento nenhum, unicamente no desenho dos músculos, sem com isso indicar ainda uma ação interpretável. Por outro lado, este Hércules era um Hércules de depois dos Trabalhos, um Hércules ocioso, acolhido entre os deuses ao término de suas provas. De modo que aquilo que devia ser lido nos músculos do Torso, era o movimento ultrapassado, o movimento igualado ao repouso, o “trabalho” igualado à ociosidade. O que ele expressava, era uma beleza específica, a beleza de uma união imediata dos contrários, de uma expressão integral da vida igual à ausência de expressão.

Dessa indiferença radical que definia uma nova idéia do belo, Winckelmann fez a manifestação de uma beleza antiga perdida, a da arte grega clássica. Dessa beleza perdida, ele fez a expressão de uma liberdade perdida, a do povo grego. Dessa liberdade, ele fez a identidade feliz de um agir e de um ser-aí, a manifestação de um povo totalmente ativo em razão de sua total adequação à terra que o alimentava e ao céu que ele contemplava.

É preciso tomar a medida exata do que está em jogo nesse torso de trabalhador separado de seus membros de trabalhador, que também é um deus separado dos instrumentos da sua vontade: a ruptura de um esquema da adequação entre a distribuição das condições ou ocupações e a distribuição de corpos e equipamentos corporais adaptados a essas condições e ocupações. É o que Schiller comentará trinta anos depois de Winckelmann e dois anos depois da decaptação do rei da França, a propósito, desta vez, de uma cabeça sem corpo, a da Juno Ludovisi: a cabeça de uma deusa que não comanda nem obedece a ninguém, que não faz nem quer nada. O que essa cabeça ociosa, indiferente, simboliza é a neutralização da oposição entre a atividade e a passividade, isto é, da partilha do mundo entre a classe dos homens ativos, que são os homens “do lazer” e a dos homens passivos, a dos homens destinados à passividade do trabalho reprodutor. Schiller viu nisto o princípio de uma revolução da experiência sensível, sem a qual a revolução das formas do Estado se perde no terror. Mas, uma vez mais, não se trata aí de um simples assunto de filósofos cândidos ou poetas delicados. O que Schiller assinala a seu modo é essa nova forma de existência das obras de arte, que se dá num modo de visibilidade que confunde materialmente a distribuição dos lugares e das funções, e uma forma de experiência que confunde a relação funcional das identidades sociais e dos “equipamentos corporais”. Assim, no decorrer da Revolução de 1884 na França, o fantasma do herói sem braços nem pernas e do movimento recolhido em imobilidade assombra uma narrativa publicada num jornal revolucionário operário: a narrativa da emancipação “estética” pela qual um operário da construção se forja um novo corpo, separando seu olhar contemplador dos braços que trabalham para o patrão: eu cito: “ Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em idéias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas”. A constituição de uma “voz” política – de um “nós” – dos trabalhadores passa por essa reconfiguração da experiência sensível de um “eu”, por essa dissociação da capacidade dos braços e da capacidade do olhar, que desfaz a aderência de um “equipamento corporal” a uma condição.

Se não podemos deixar de ver o museu por detrás do lugar apartado do “Acampamento urbano”, os altos-fornos abandonados dos Becher e o vídeo dos artistas transformados em trabalhadores da construção nos remetem a essa relação entre o torso mutilado do herói que terminou seus trabalhos e a disjunção operada entre os braços e o olhar do operário da construção. As fotografias dos altos-fornos se inscrevem num espaço de “solidão” que se tinha constituído em torno da estátua do trabalhador ocioso. A reportagem do trabalho dos artistas cubanos recoloca em cena o grande projeto surgido em torno da relação imaginada da estátua com o seu povo: o projeto de uma arte que, como o dirá Malevitch, após a Revolução de 17, não fabrica mais obras de arte mas formas de vida, e consacra seus museus não mais às velhas estátuas gregas mas aos projetos de construção do futuro. Dir-se-á que se tratam de exemplos mínimos ou até mesmo caricaturais. Mas a “caricatura” também é uma projeção que nos permite compreender o que a “política da arte” pode significar e qual tensão fundamental habita a história dessa política.

A própria oposição entre a fábrica abandonada e o vídeo dos artistas de boa vontade nos lembra que: os grandes projetos do porvir comunista podiam substituir as velhas estátuas gregas nos museus por uma razão muito simples: porque o futuro dos projetos comunistas e o passado das velhas estátuas gregas têm a ver com um mesmo núcleo fundamental: o da política da estética. Do mesmo modo, as oposições convencionais entre a autonomia e a heteronomia da arte, arte pela arte e arte engajada remetem a um único e mesmo paradigma fundamental: o dessa estátua que promete um futuro de emancipação coletiva em razão de sua posição solitária, indiferente, assim como a construção de um novo mundo em razão mesmo de sua ausência de toda vontade que comande e de todo membro que execute. A política da arte no regime estético das artes repousa sobre o paradoxo originário dessa “liberdade de indiferença” que significa a identidade de um trabalho e de uma ociosidade, de um movimento e de uma imobilidade, de uma atividade e de uma passividade, de uma solidão e de uma comunidade. Não existe uma pureza estética oposta a uma impureza política. É a mesma “arte” que se expõe na solidão dos museus à contemplação estética solitária e que se propõe trabalhar na construção de um novo mundo.

Mas a política da indiferença também dá lugar a duas políticas estéticas alternativas. A promessa de comunidade embutida na estátua grega mutilada se deixa interpretar desde o início de duas maneiras. A estátua promete um futuro de liberdade e igualdade por duas razões opostas. Ela o promete, uma primeira vez, porque ela é arte, porque ela é algo “extremamente inútil, frágil e não produtivo”, pertencendo a um tempo-espaço próprio, o do museu, e que define uma experiência sensível desconectada das condições normais da experiência sensível e das hierarquias que a estruturam. Ela o promete, uma segunda vez, pela razão inversa: porque ela não foi produzida como obra de arte destinada a um museu, mas como manifestação de uma vida coletiva para a qual a arte não existia como categoria separada, em que a arte não se separa da vida pública nem a vida pública da coletividade da vida concreta de cada um.

A partir daí definiram-se dois grandes paradigmas da política da estética. O primeiro privilegia o movimento recolhido na imobilidade da estátua, a atividade expressa na sua passividade, a comunidade manifestada na sua solidão. O que a liberdade de indiferença da estátua expressa, assim, é uma indiferenciação da arte e da vida. E o futuro que sua solidão promete é um futuro em que essa solidão será suprimida, onde a liberdade e a igualdade excepcionais da experiência estética serão incorporadas nas formas da experiência comum. A experiência estética deve realizar sua promessa suprimindo sua particularidade, construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde arte e política, trabalho e lazer, vida pública e existência privada se confundam. Ela define portanto uma metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a política realiza apenas aparentemente: transformar as formas da vida concreta, enquanto a política se limita a mudar as leis e as formas estatais.

Trata-se do programa cuja primeira expressão se deu na época da Revolução Francesa, no Primeiro programa sistemático do idealismo alemão, que visava substituir o mecanismo morto do Estado pelo corpo vivo de um povo animado por uma filosofia transformada, pelos poetas, em mitologia. Foi esse projeto que animou tanto o retorno ao artesanato sonhado pelo Arts and Crafts quanto os grandes manifestos modernistas do Werkbund ou do Bauhaus e a participação de artistas futuristas, suprematistas e construtivistas na revolução soviética. Essa solidariedade da revolução artística e da revolução marxista atesta uma solidariedade mais fudamental. Pois o projeto marxista de uma revolução radical, capaz de mudar as formas de produção e de circulação que são a realidade profunda da vida coletiva, escondidas sob as formas e aparências da política, é ele próprio dependente da metapolítica estética. O que quer dizer que a “revolução estética” define algo completamente distinto de um modo de percepção das obras de arte. Neste paradigma, a arte está destinada a se realizar se suprimindo para fundir-se com uma política que, também ela, se realiza se suprimindo.

A este paradigma se opôs a interpretação inversa da “estética”. Nessa interpretação, o poder revolucionário de indiferença repousa inteiramente na solidão da estátua ociosa e na separação estrita da experiência estética de toda funcionalidade. É o que resume o paradoxo de Adorno: “A função social da arte é a de não ter função.” O potencial de emancipação da obra se encontra inteiramente na sua ociosidade, isto é, no seu distanciamento com relação a todo “trabalho” social, a toda participação em uma obra de transformação militante ou em toda tarefa de embelezamento do mundo comercial e da vida alienada. Ao programa da arte que deve se realizar se suprimindo responde essa política que deve se abster de toda política.Tal política, contudo, não pode ser reduzida à simples idéia da autonomia da arte. O que essa separação da arte sustenta de fato, em Adorno, não é a pureza da arte, mas sua impureza, a marca da divisão do trabalho que a institui como realidade separada. De modo que a perfeição da estátua mutilada revela, não a plenitude da vida de um povo, mas a separação entre a cabeça de Ulisses amarrado ao mastro, os braços dos marinheiros de ouvidos tapados e a voz das sereias.

A idéia de uma política da arte é portanto bastante distinta da idéia de um trabalho que visa tornar as frases de um escritor, as cores de um pintor ou os acordes de um músico adequados à difusão de mensagens ou a produção de representações apropriadas a servir uma causa política. A arte faz política antes que os artistas o façam. Mas sobretudo a arte faz política de um modo que parece contradizer a própria vontade dos artistas de fazer – ou de não fazer – política em sua arte. Quando Flaubert publica Madame Bovary a crítica unânime enxerga na obra do romancista reacionário e partidário da arte pela arte o triunfo da democracia. O privilégio absoluto do estilo indiferente ao tema e a recusa de todo julgamento, de toda mensagem social, é justamente isso que aparece para os críticos amedrontados como o triunfo da supressão democrática das diferenças. E quanto ao operário da construção do qual falava há pouco, a recomendação de leitura que faz a seus camaradas, não é Os mistérios de Paris ou algum outro livro descrevendo a condição e o sofrimento do povo. São os grandes livros dos heróis românticos, Werther, René ou Obermann. Pois o que falta aos proletários, não é a consciência da condição deles, mas a possibilidade de mudar o ser sensível que está ligado a essa condição. E eles podem fazê-lo somente roubando desses heróis de romance o modo de ser que lhes é, por princípio, recusado, o modo de ser passivo, próprio àqueles que não fazem nada, que não têm ocupação nem lugar na sociedade.

O fundo do probema é simples de expressar: a política da arte própria ao regime estético se carateriza pela ruptura mesma da relação causa/efeito. A deusa não quer nada e o herói dos Doze Trabalhos está em repouso. É preciso não fazer arte para fazer arte e não fazer política para fazer política. A polaridade dessas duas políticas estruturais da arte complica singularmente a idéia de arte política como uma arte que faz tomar consciência de uma realidade e produz, assim, a passagem de uma passividade a uma atividade. O que a política da arte produz não é a passagem de uma ignorância a um saber e de uma passividade a uma atividade. O operário da construção tem tanta necessidade de “ignorar” sua condição quanto de conhecê-la. Pois conhecer também quer dizer reconhecer e consentir, enquanto ignorar também quer dizer não mais reconhecer a regra do jogo, não mais aderir à configuração de um mundo. E ele também precisa adquirir uma certa “passividade”. Pois, a quem é ativo com suas mãos pede-se, em geral, que seja passivo quanto ao resto, tanto que ele precisa cessar a atividade do seus braços para adquirir a atitude “passiva” daquele que contempla o mundo. Uma arte crítica deve portanto ser, a sua maneira, uma arte da indiferença, uma arte que construa o ponto de equivalência de um saber e de uma ignorância, de uma atividade e de uma passividade.

O artista crítico, Brecht no caso, que quer demonstrar que o nazismo é a única expressão dos interesses capitalistas, sabe que a demonstração deve ser dupla. Ela deve acrescentar ao processo que “faz conhecer” o estado das coisas ao espectador, um processo inverso que o coloque a distância de si mesmo, que o torne estrangeiro a fim de que ele próprio se sinta estrangeiro a este estado de coisas. É preciso que os assuntos de couve-flor de Arturo Ui sejam mais do que assuntos de couve-flor, que eles sejam a alegoria transparente da realidade econômica que sustenta o poder nazista. Mas também é preciso, ao inverso, que sejam apenas assuntos de couve-flor, uma realidade estúpida, insensata, que deve suscitar aquele sentimento de absurdo que nutre ao mesmo tempo o puro prazer lúdico e o sentimento do intolerável. E é preciso que o prosaismo que reduz os grandes discursos sobre o destino do povo a histórias de couve-flor se expresse na solenidade de versos trágicos

Assim se estabeleceu a figura estandardizada da arte crítica: a do encontro de elementos heterogêneos, incompatíveis, que instaura um conflito entre dois regimes sensíveis. É preciso entender bem o que esse jogo de heterogêneos quer dizer. Pode-se facilmente reduzi-lo à relação entre uma realidade e uma aparência: uma forma de arte política emblematizou isso: a fotomontagem, que mostra, com John Heartfield, a realidade do ouro capitalista na garganta de Adolf Hitler, ou quarenta anos mais tarde, com Martha Rosler, a realidade da imagens da guerra do Vietnam por trás das imagens publicitárias da felicidade americana. Mas aí onde a aparência se dissolve na realidade, a arte e a política se dissolvem igualmente. Pois ambas estão ligadas à consistência de uma aparência, ao poder que tem uma aparência de reconfigurar o “dado” da realidade, de reconfigurar a própria relação entre aparência e realidade. Neste sentido, arte e política têm em comum o fato de produzirem ficções. Uma ficção não consiste em contar histórias imaginárias. É a construção de uma nova relação entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum. Se os assuntos de couve-flor versificados têm a ver com a política, não é porque eles revelariam um segredo ignorado, mas porque eles fazem, a sua maneira, o que faz a política, porque eles embaralham a repartição estabelecida entre a poesia e a prosa, entre a língua dos assuntos públicos e a dos assuntos domésticos, entre os lugares, as funções e as competências. Pois é isso que a política também faz quando manifestantes que representam apenas a si mesmos desafiam o “Estado popular” desfilando sob o cartaz “nós somos o povo” ou quando operários que supostamente deveriam pertencer ao espaço privado do trabalho se declaram como participantes do espaço e da reflexão comuns. Sabe-se, aliás, que muitos desses trabalhadores, como nosso operário da construção, começaram escrevendo em versos, isto é, quebrando a barreira que fazia da prosa a linguagem adequada à condição deles.

A fórmula da arte crítica é marcada por essa tensão. A arte não produz conhecimentos ou representações para a política. Ela produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação política, mas no seio de sua própria política, isto é, antes de mais nada no seio desse duplo movimento que, por um lado, a conduz para sua própria supressão, de outro, aprisiona a política da arte na sua solidão. Ela os produz ocupando essas formas de recorte do espaço sensível comum e de redistribuição das relações entre o ativo e o passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os espaços-tempos do teatro ou da projeção, do museu ou da página lida. Ela produz, assim, formas de reconfiguração da experiência que são o terreno sobre o qual podem se elaborar formas de subjetivação políticas que, por sua vez, reconfiguram a experiência comum e suscitam novos dissensos artísticos.

A partir daí, é possível colocar o problema das políticas da arte hoje saindo dos esquemas simplistas como o que opõe o moderno ao pós-moderno. O discurso pós-moderno pressupõe um cenário simples da modernidade, identificada ao paradigma da obra autônoma, da grande arte separada da cultura ou da arte populares. Este paradigma teria voado pelos ares nos anos 60 com a invasão da cultura comunicacional, publicitária e comercial que teria embaralhado a fronteira entre grande arte e arte popular, obra única e reprodução, arte e vida cotidiana. Mas a indefinição das fronteiras é tão antiga quanto o próprio “modernismo”. A estátua grega mutilada em torno da qual se organiza o espaço do museu e da estética é ao mesmo tempo arte e não-arte: uma manifestação indiferenciada da vida. E o momento em que a Arte começou a ser nomeada com um A maiúsculo, no início do século XIX, foi também o momento em que começaram a se desenvolver a reprodução, a arte industrial e a indústria literária, o momento em que as obras de arte começaram a se banalizar em objetos comerciais e em decoração do mundo profano, o momento também em que os objetos do mundo ordinário começaram a ultrapassar a fronteira no sentido inverso para produzir novas possibilidades de distância artística a partir da própria proximidade e da mistura das coisas da arte e das coisas do mundo. A mistura é consubstancial ao regime estético da arte. O que está em questão hoje em dia é a natureza dessa mistura. Não é a perda da arte nos objetos e trabalhos do mundo. É sobretudo a perda do sentido da ficção, a tendência a anular a incisividade do encontro dos heterogêneos, seja para fazer dela a fórmula de um jogo cuja virtude política sempre presssuposta torna-se indecidível, seja um puro testemuho da realidade, seja ainda uma intervenção direta nessa realidade.

Por um lado, a fórmula da arte crítica se banaliza como fórmula da arte lúdica. Há quatro anos atrás uma exposição parisiense colocava lado a lado dispositivos artísticos dos anos 60 e 70 e obras contemporâneas. De modo que as fotomontagens de Martha Rosler, que eu evocava há pouco, estavam expostas à proximidade da obra de um artista contemporâneo chinês, Wang Du, que lançava mão do mesmo princípio de confrontação de dois elementos heterogêneos. Wang Du partira de duas fotos: uma foto oficial do casal Clinton preparando uma viagem à China e uma foto tirada de um site pornográfico chinês que era uma reprodução da Origem do Mundo de Courbet. Ele havia conferido a essas imagens uma realidade plástica: de um lado, o casal Clinton endurecido no sorriso de circunstância como dois manequins de Museu de cera, do outro, esse sexo de mulher escancarado, transformado em estátua de cera. Pode-se ler nesse conjunto tantas formas de derrisão quanto se queira: de um lado a China oficial recebendo o casal americano, de outro a China oficiosa explorando os sites pornôs; de um lado a glória do casal presidencial, do outro a miséria do presidente obrigado a detalhar na televisão o detalhe de suas atividades sexuais extra-conjugais; de um lado a grandeza da arte e de suas deusas pintadas ou esculpidas, de outro a realidade pornográfica – a realidade da exploração do corpo feminino – ocultada por detrás das sublimações da arte. Poderia acrescentar ainda outros exemplos. Justamente, havia muitos alí. A máquina desmistificadora começa a funcionar sozinha. Ela pode instaurar seu jogo entre um elemento qualquer e qualquer outro elemento, mas, a partir daí, não há mais nada em jogo nesse jogo. O sentido do dispositivo se torna indecidível. Torna-se uma maneira de capitalizar a indecidibilidade de um dispositivo, sua oscilação entre várias significações. Desta forma a mesma exposição pôde ser apresentada nos Estados Unidos com o título pop Let’s entertain e em francês com o título Au-delà du spectacle (Para além do espetáculo). Em ambos casos, o que o espectador tinha a sua frente eram dispositivos de instalação “imitando” os brinquedos dos parques de diversão, os mangás ou as novelas, os sons das discotecas, etc. Mas num caso a etiqueta convidava a paticipar de uma arte “lúdica”, consciente da inexistência de qualquer separação efetiva entre seus dispositivos e os dispositivos comerciais que ela imita. No outro, ela convidava a ver na nova contextualisação desses dispositivos, nas formas de apresentação da arte dos museus uma crítica do mundo espetacular da mercadoria. O dispositivo artístico vive, assim, da indecidibilidade de seu mecanismo e de seu efeito.

É por isso que a mistura dos heterogêneos tende com freqüência, hoje em dia, a se distanciar dessas ambigüidades, a se aproximar de um inventário de coisas, imagens, sons, etc, que constituem nosso universo. Por exemplo, uma exposição intitulada Voilà foi organizada, na ocasião do ano 2000, no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. A exposição pretendia reunir testemunhos de um século de história comum: fotografias de Hans Peter Feldmann de cem pessoas, com idade entre um e cem anos; instalação por Christian Boltanski de catálogos de telefone de todos os países do mundo, tidos como, eu cito, “espécimes de humanidade”; fotografias de tipos sociais por August Sander. No meio da exposição encontravam-se esses altos-fornos dos Becher de que falava no início e que tendem a se tornar manifestos mudos pelos quais uma exposição de arte contemporânea declara ao mesmo tempo sua seriedade artística e seu engajamento político.

A mais-valia artística e política concedida a esse tipo de trabalhos diz respeito à equivalência que eles estabelecem entre duas políticas. Por um lado, a política do inventário parece opor a seriedade limitada da arte documentária, que simplesmente testemunha sobre o mundo, ao jogo duplo da arte crítica/lúdica. Mas, por outro, esta arte pratica uma outra forma de jogo duplo. Por um lado a fotografia objetiva nos informa sobre o mundo, no lugar de pretender julgá-lo ou modificá-lo. Mas o mundo sobre o qual ela nos informa é precisamente o mundo abolido. A fotografia do alto-forno abandonado é também uma “escultura”. Assim como o Torso do Belvedere conservava em suas formas indiferentes a força perdida da liberdade grega, ela conserva tanto o sonho perdido da emancipação operária quanto aquele momento da arte em que os artistas podiam pintar telas abstratas ou construir fábricas. Essas duas políticas da arte são como que conduzidas a sua origem comum. O universo operário e político ao qual essas fotografias nos remetem parecem sobreviver a si mesmos numa tarefa militante da arte que é a de obedecer a certo número de imperativos formais: a objetividade neutra do quadro, a lei das séries. A objetividade fotográfica, a utilização neutra do meio (medium) aparece então como uma dupla fidelidade: fidelidade à idéia de uma obra que não busca fazer arte, a mostrar a arte do seu autor, mas que, ao contrário, sai do mundo da arte pura, para fazer um trabalho de pesquisa reveladora de um mundo social e de suas contradições; mas também a fidelidade ao imperativo que comanda à obra não fazer política ou melhor de fazê-la indiretamente: pela sua recusa de toda efusão sentimental e de todo engajamento militante como de todo embelezamento do mundo industrial e comercial; pelo fato mesmo que a imagem não trai nenhuma intenção subjetiva e não vai na direção de nenhuma outra subjetividade; que ela permanece estritamente insignificante e não afetada, aprisionada na sua moldura, como a superfície do quadro na teorização modernista da pintura. À ambivalência do jogo, a forma do inventário contrapõe uma espécie de bivalência. A fotografia do alto-forno é ao mesmo tempo a última forma de auto-suficiência da obra autônoma e a última encarnação do torso mutilado que ligava essa auto-suficiência a uma promessa de reconciliação entre arte e trabalho. Ela é o emblema congelado de todas as contradições que se entrelaçaram no conceito equívoco de modernidade.

As ambigüidades do jogo e do inventário favorizam o projeto de uma arte que não mais jogaria com o dentro e o fora, a presença e a ausência, que não mais apresentaria duplos dos objetos ou das mensagens do mundo, mas que produziria diretamente coisas do mundo ou intervenções no mundo, uma arte que sairia inteiramente dos lugares tidos como seus ou que faria, ao inverso, o mundo entrar nesses lugares. Ou seja, justamente do que se trata no projeto “Eu e nós”. É também o que atestam as múltiplas tentativas contemporâneas para fazer entrar no museu a realidade exterior. Desta forma, nesses últimos anos, vimos as salas de exposição se povoarem de construções ou máquinas diversas – reproduções de moradias, propostas de novas habitações, demostrações de refinarias ecológicas móveis – e vimos suas paredes se cobrirem de reportagens de ações feitas no exterior, desde as provocações de Santiago Sierra, pagando os operários imigrantes para que eles cavassem suas próprias covas, até as mistificações dos Yes Men brincando de executivos num congresso de empresários. Nesse contexto, a Bienal de São Paulo apresentava a obra de Rene Francisco da qual falava no início entre uma tenda mongol, um barco do Ceará, uma reportagem fotográfica sobre a miséria da Polônia pós-socialista e uma reportagem sobre a América capitalista interiorana. O que tornava esse vídeo singular e também lhe coferia seu lado patético era que ele nos lembrava, a partir de um dos últimos países a se reclamarem do comunismo, o que tinha sido o sonho da arte revolucionária: não mais fazer arte, mas construir positivamente os espaços e os edifícios da nova vida. Mas ele o lembrava evidentemente sob a forma de um paliativo derrisório: no lugar de construir as casas funcionais do novo mundo comunista, reformar a casa de um dos esquecidos pela grande promessa estético-política.

Não se trata de fazer chacota desse tipo de engajamento atístico mas de colocar, a través dele, um problema. Existe hoje toda uma corrente que propõe uma arte diretamente política na medida em que ela não mais constrói obras feitas para serem contempladas ou mercadorias a serem consumidas, mas modificações do meio ambiente, ou ainda situações apropriadas ao engajamento de novas formas de relações sociais. Existe, por outro lado, um contexto contemporâneo, isto é, aquele a que se chama de consenso. O consenso é bem mais do que aquilo a que o assimilamos habitualmente, a saber, um acordo global dos partidos de governo e de oposição sobre os grandes interesses comuns ou um estilo de governo que privilegia a discussão e a negociação. É um modo de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de interesses ou de valores entre grupos, mas, mais profundamente, a possibilidade de opor um mundo comum a um outro. O consenso tende a transformar todo conflito político em problema que compete a um saber de especialista ou a uma técnica de governo. Ele tende a exaurir a invenção política das situações dissensuais. E esse déficit da política tende a dar um valor de substitutivo aos dispositivos pelos quais a arte entende criar situações e relações novas. Mas essa substituição corre o risco de operar-se dentro das categorias do consenso, levando as veleidades políticas de uma arte saída de si na direção das terefas políticas de proximidade e de medicina social onde se trata, nos termos do teórico da estética relacional, de “consertar as falhas do vínculo social”. Tudo se passa, portanto, como se a tentativa para ultrapassar a tensão inerente à política da arte conduzisse ao seu contrário, isto é, à redução da política ao serviço social e à indistinção ética. Tudo se passa como se fosse preciso de algum modo que a arte, para permanecer política, consentisse em ficar no interior da contradição da sua política.

É o que eu gostaria de ilustrar a través de duas obras recentes que nos falam diversamente de espaço e de habitação, de desvinculação social e de utopia.

Penso em primeiro lugar no vídeo de Anri Sala Dammi i Colori. Essa obra coloca em cena uma nova encarnação da utopia da arte transformada em formas da vida coletiva. Trata-se do empreendimento do prefeito de Tirana, ele próprio pintor, que decidiu transformar sua cidade pintando todas as fachadas dos prédios em cores vivas. O vídeo nos faz ouvir o discurso do prefeito artista sobre o poder da cor de antecipar uma comunidade e fazer da cidade mais pobre da Europa a única onde todo mundo fala de arte nas ruas e nos cafés. Mas ele o confronta também à realidade muda das cores. Ora a câmera confronta visualmente as cores azul, verde, rosa ou laranja dos prédios às calçadas esburacadas ou cobertas de lixo. Ora ela as trata como um cenário feérico. Ora ela se aproxima e transforma os quadrados de cor em abstrações, indiferentes a todo projeto de transformação da vida. A superfície da obra organiza, assim, a tensão entre a cor que o discurso projeta nas fachadas e a que as fachadas rebatem.

Evocarei também o trabalho de Pedro Costa, consagrado a um grupo de marginais vivendo em meio aos imigrantes cabo-verdianos num subúrbio miserável de Lisboa, pouco a pouco entregue à demolição. Penso sobretudo no segundo filme dessa série: No Quarto de Vanda. O filme é estruturado pela tensão entre os quartos fechados nos quais, seja Vanda e sua irmã, seja um grupo vizinho de ocupantes consomem drogas ao mesmo tempo que discutem sobre a sua condição, e a rua, onde, enquanto trabalham as escavadeiras, eles se ocupam com negócios mais ou menos lícitos, desde o comércio familiar de legumes da mãe de Vanda até as tentativas dos outros de negociar objetos recuperados ou roubados, que vão da colher ao buquê de flores ou ao passarinho, qual não fosse para ganhar o dinheiro necessário para a droga.

A força do filme está na tensão que ele institui entre esse cenário de vida miserável e as possibilidades estéticas que ele encerra. A cor esverdeada que faz o quarto de Vanda se parecer com um aquário, as pequena velas que transformam o apartamento sem eletricidade dos drogados em teatro de um claro-obscuro de pintura holandesa, as cores e as arquiteturas singulares reveladas pela própria destruição, tudo isso compõe uma espécie de pictorialidade. Mas essa pictorialidade é ao mesmo tempo incessantemente refutada pelo progresso das escavadeiras.

Uma mesma tensão habita os corpos e as vozes. Por um lado, a tosse, o sofrimento, as vozes do exterior e o barulho da demolição absorvem as falas dos personagens numa espécie de afasia e seus corpos na grande igualdade estética do nada. Mas, por outro lado, essas vozes abafadas e essas pequenas ações aparecem como uma conquista constante sobre o silêncio e a apatia, uma tentativa para tornar seus corpos capazes de continuar e suas falas capazes de refletir a condição deles, de se colocar à altura do destino deles: uma espécie de vitória sobre as máquinas que pouco a pouco os põe para fora de casa.

Pode-se dizer que esse olhar indiferente, aqui simbolizado pelo olho semi-cerrado de um gato, se recusa a nos esclarecer a respeito das forças objetivas que produzem tanto a favela quanto sua supressão. Mas também pode-se dizer, inversamente, que essa ausência de explicações nos coloca na presença do que é realmente político: não o conhecimento das razões que produzem tal ou tal vida, mas o confronto direto entre uma vida e o que ela pode. O filme não se furta a essas tensões. Pelo contrário, ele as coloca em cena. Contudo, ele tampouco se esquiva ao fato de que um filme é apenas um filme, que sua maneira de fazer política está sempre tensionada entre contrários e que sua eficácia depende, em última instância, de algo que tem lugar fora dele.

Tomando esses exemplos, eu não pretendi dizer o que deve ser uma arte política. Tentei, ao inverso, explicar por que não se pode fixar tais normas. O problema não é, como se diz com freqüência, que a liberdade da arte seja incompatível com a disciplina política. Ele está no fato da arte ter sua política própria, que não só faz concorrência à outra, mas que também se antecipa às vontades dos artistas. Tentei mostrar que essa política, tensionada entre dois pólos opostos, comporta sempre uma parte de indecidível. Alguns jogam com esse indecidível para fazer dele a auto-demonstração da virtuosidade artística. Outros, como os que eu acabei de evocar, tentam expor as tensões dele. Mas a tentativa de forçar esse indecidível para definir uma boa política da arte conduz, em todos os casos, à supressão conjunta da política e da arte nessa indistinção que leva hoje o nome de ética.

Tradução: Mônica Costa Netto

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

da palavra

Sei o pulso das palavras a sirene das palavras
Não as que se aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam os caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro
Às vezes as relegam inauditas inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras Parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios alma carcaça

(Maiakóvski. Tradução de Augusto de Campos, 1928/1930)

A DECADÊNCIA DO TRABALHO

A obrigação de produzir aliena a paixão de criar. O trabalho produtivo é parte dos processos de manutenção da ordem. O tempo de trabalho diminui à medida que cresce o império do condicionamento.

Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir sempre foi antagonista do desejo de criar. O que resta de centelha humana, de criatividade possível, em um ser privado do sono às seis horas a cada manhã, que se equilibra nos trens suburbanos, ensurdecido pelo ruído das máquinas, lixiviado, cozido a vapor pelas cadências, os gestos privados de sentido, o controle estatístico, e jogado ao fim do dia nos saguões das estações, catedrais de partida para o inferno das semanas e o ínfimo paraíso dos finais de semana, onde a multidão comunga a fadiga e o embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, nos ciclos de vinte e quatro horas ouve-se o uniforme estilhaçar de vidraças: rachadura da repetição mecânica, rachadura do tempo-é-dinheiro, rachadura da submissão aos chefes, rachadura do tédio, rachadura da fadiga. Da força viva esmigalhada brutalmente ao rasgo escancarado da velhice, a vida se racha por todos lados sob os golpes do trabalho forçado. Jamais uma civilização atingiu tal grau de desprezo pela vida; afogada no desgosto, jamais um geração experimentou tal raiva de viver. Aqueles que matamos lentamente nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, beijam, ocupam as ruas, pegam em armas, criam uma nova poesia. Já está se formando a frente contra o trabalho forçado; os gestos de recusa já modelam a consciência futura. Todo apelo à produtividade é, sob as condições desejadas pelo capitalismo e pela economia sovietizada, um apelo à escravidão.

A necessidade de produzir acha tão comodamente as suas justificativas que qualquer Fourastié pode encher dez livros com elas sem esforço. Infelizmente para os neo-pensadores do economismo, estas justificativas são aquelas do século XIX, de uma época onde a miséria das classes trabalhadores fazia do direito ao trabalho o homólogo do direito à escravidão, reivindicada na aurora dos tempos pelos prisioneiros condenados à morte. O mais importante era não desaparecer fisicamente, sobreviver. Os imperativos da produtividade são imperativos de sobrevivência; mas a partir de agora as pessoas querem viver, não somente sobreviver.

O tripalium era um instrumento de tortura. Labor significa "tormento". Há uma certa leviandade no esquecimento da origem das palavras "trabalho" e "labor". Os nobres tinham ao menos a memória de sua dignidade, assim como da indignidade que afligia os seus servos. O desprezo aristocrático pelo trabalho refletia o desprezo do senhor pelas classes dominadas; o trabalho era a expiação à qual foram condenadas por toda a eternidade por um decreto divino, que os queria, por razões impenetráveis, inferiores. O trabalho se inscrevia, entre as sanções da Providência, como a punição do pobre, e, uma vez que ela era também meio de salvação futura, uma tal punição podia se revestir de satisfação. No fundo, o trabalho importava menos do que a submissão.

A burguesia não domina, ela explora. Ela submete pouco, ela prefere usar. Como não se viu que o princípio do trabalho produtivo substituiu simplesmente ao princípio da autoridade feudal? Por que não se quis compreender isso?

Seria porque o trabalho melhora a condição dos homens e salva os pobres, pelo menos ilusoriamente, da danação eterna? Sem dúvida, mas hoje se torna evidente que a chantagem de dias melhoras sucede docilmente à chantagem de salvação no além. Em um ou outro caso, o presente está sempre sob o punho da opressão.

Seria porque ele transforma a natureza? Sim, mas o que farei de uma natureza ordenada em termos de lucros em uma ordem de coisas onde a inflação técnica encobre a deflação dos objetivos da vida? Além disso, da mesma forma que o ato sexual não tem por função procriar, mas eventualmente gera crianças, é como subproduto que o trabalho organizado transforma a superfície dos continentes, não como finalidade. Trabalhar para transformar o mundo? Vejam só! O mundo se transforma pelo molde do trabalho forçado; e é por isso que ele se transforma para pior.

O homem se realizará em seu trabalho forçado? No século XIX, subsistia na concepção de trabalho um traço ínfimo de criatividade. Zola descreve um concurso de fabricantes de prego onde os trabalhadores competiam em habilidade para realizar sua minúscula obra-prima. O amor pelo ofício e a pesquisa de uma criatividade já sufocada permitia sem dúvida suportar dez a quinze horas às quais ninguém poderia resistir se não houvesse alguma forma de prazer. Uma concepção ainda artesanal em seu princípio deixava a cada um a possibilidade de ter um conforto precário no inferno da fábrica. O taylorismo deu o golpe de misericórdia em uma mentalidade preciosamente entretida pelo capitalismo arcaico. É inútil esperar de um trabalho feito na cadeia de produção mais do que uma caricatura de criatividade. O amor ao trabalho bem feito e o gosto pela promoção no trabalho são hoje a marca indelével da fraqueza e da submissão mais estúpidas. É por isso que, onde quer que a submissão seja exigida, o velho peido ideológico toma seu rumo, do Arbeit macht frei [o trabalho liberta] dos campos de concentração aos discursos de Henry Ford e de Mao Tsé-Tung.

Qual é então a função do trabalho forçado? O mito do poder exercido conjuntamente pelo chefe e por Deus achava na unidade do sistema feudal a sua força de coerção. Ao destruir o mito unitário, o poder fragmentário da burguesia abre, sob o signo da crise, o reino de ideologias, que jamais atingirão, nem sozinhas nem juntas, um quarto da eficácia do mito. A ditadura do trabalho produtivo oportunamente entra em cena. Ela tem por missão enfraquecer biologicamente o maior número de homens, castrá-los coletivamente e embrutecê-los, a fim de torná-los receptivos às mais medíocres, menos viris, mais senis ideologias jamais vistas na história da mentira.

O proletariado do começo do século XIX consiste de uma maioria de pessoas diminuídas fisicamente, de homens sistematicamente alquebrados pela tortura da oficina. As revoltas vêm de pequenos artesãos, de categorias privilegiadas ou de sem-trabalho, não de trabalhadores violentados por quinze horas de labor. Não é perturbador constatar que a diminuição do número de horas de trabalho surge no momento em que o espetáculo de variedades ideológicas produzidos pela sociedade de consumo parece ser capaz de substituir eficazmente os mitos feudais destruídos pela jovem burguesia? (Há pessoas que realmente trabalharam para comprar um refrigerador, um carro, uma televisão. Muitos continuam a fazê-lo, "convidados" que são a consumir a passividade e o tempo vazio que lhes "oferece" a "necessidade" de produzir.)

Estatísticas publicadas em 1938 indicam que a aplicação das técnicas de produção contemporâneas reduziriam a duração do tempo de trabalho necessário para três horas por dia. Não somente estamos longe disto com nossas sete horas de trabalho, mas após ter usado gerações de trabalhadores prometendo-lhes o bem-estar que ela lhe vende a prazo, a burguesia (e sua versão sovietizada) prossegue a sua destruição do homem fora do trabalho. Amanhã ela exibirá como isca suas cinco horas de desgaste cotidiano exigidas por um tempo de criatividade que crescerá na proporção em que puder ser preenchido de uma impossibilidade de criar (a famosa organização do lazer).

Já foi dito corretamente: "A China enfrenta problemas econômicos gigantescos; para ela, a produtividade é uma questão de vida ou morte." Ninguém pensa em negá-lo. O que me parece grave não se refere aos imperativos econômicos, mas à maneira de respondê-lo. O Exército Vermelho de 1917 se constituía em um tipo novo de organização. O Exército Vermelho de 1960 é um exército como se encontra nos países capitalistas. As circunstâncias provaram que a sua eficácia ficava muito abaixo das possibilidades de milícias revolucionárias. Da mesma forma, a economia chinesa planificada, ao não permitir aos grupos federados a organização autônoma de seu trabalho, se condena a tornar-se uma forma de capitalismo aperfeiçoado, chamado socialismo. Alguém se deu ao cuidado de estudar as modalidades de trabalho dos povos primitivos, a importância do jogo e da criatividade, o incrível rendimento obtido por métodos que uma gota das técnicas modernas tornaria cem vezes mais eficazes ainda? Parece que não. Todo apelo à criatividade vem de cima. Ora, só a criatividade é espontaneamente rica. Não é da produtividade que devemos alcançar uma vida rica, não é da produtividade que devemos esperar uma resposta coletiva e entusiasta à demanda econômica. Mas o que dizer mais quando sabemos como o trabalho é cultuado em Cuba e na China, e com que facilidade as páginas virtuosas de Guizot passam de agora em diante em um discurso de 1o. de Maio?

À medida que a automação e a cibernética deixam prever a substituição em massa de trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva de seus decretos televisionados. Por qual recompensa trabalhar de agora em diante? A farsa se esgotou; não há mais nada a perder, nem mesmo uma ilusão. A organização do trabalho e a organização do lazer resguardam as tesouras castradoras encarregadas de melhorar a raça dos cães submissos. Veremos qualquer dia os grevistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão, talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo.


Raoul Vaneigem

1967

Traduzido por Daniel Cunha. Título original: "La déchéance du travail" ( http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/traite-5.html )
Excerto do livro "A arte de viver para as novas gerações" (Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations), Raoul Vaneigem

Soy Loco Por Sol



Olha o sol tingindo a madrugada
Um calor intenso estranho invade aos poucos o meu peito

É uma paixão incontrolável eu não consigo resistir
Comprar, comprar, gastar, torrar
Eu não vivo sem consumir
Sou o gatilho mais rápido do oeste
Com um American Express na mão
Já tenho 3 rifles em casa
E não vejo a hora de sacar mais uma vez a carteira
Aquela belezura prateada e automática
Logo, logo reforçará a minha coleção
Soy loco por carros novos
Um modelo pra cada ocasião
Vibro imaginando a quantidade de ozônio devastado
Cada vez que acelero meu novo 4/4
Se alguns desses abraçadores de lagoas
Estão mesmos dispostos a perder seu sono com isso
Vão em frente!
Quanto a mim estou ocupado demais
Tentando decidir como investir e gastar bem meu dinheiro
Liberdade, Liberdade!
Regulação é o mesmo que censura

Dane-se o planeta!
Dane-se as futuras gerações!

E é por isso Sol
Que eu sou apaixonado
Sou fanático e posso até morre por ti América

Eu tive um sonho
Diante da minha nova TV de 500 canais
Me deparei com um estranho episódio dos Simpsons
A Floresta Amazônica havia se transformado num imenso deserto americano
Conheci a doce e ingênua Solange trabalhando pro lá
Num dos milhares de postos da TEXACO
Ela atendia a todos que paravam com o mesmo sorriso largo
Dizendo “bem vindo ao deserto do real”
Convidei-a para um café e ela terminou me contando
Que tinha acabado de chegar da América
Triste, desolada, confessou que tinha sido deportada.
Pra minha surpresa Solange topou viajar comigo de Ultraleve
A centésima para foi numa praia deserta próximo a Tihuana no México
Olha o Sol tingindo a madrugada...

Quando ela menos esperava estávamos sobrevoando a noite de balão
O trecho do muro daquele imenso muro que adentra o pacífico
Solange no entanto não se alegro
É difícil viver na clandestinidade ela lembrou
Então eu lhe contei que seus problemas tinham acabado
Pois eu conhecia uma maneira muito simples de conseguir o Green Card
é só a gente se alistar para o glorioso exercito americano
Em pouco tempo nos tornaríamos fuzileiros
E viveríamos juntos, felizes e totalmente realizados
Torturando aqueles vermes mulçumanos na base de Guatánamo em Cuba.


Um calor intenso estranho invade aos poucos o meu peito
Acordei suado e triste por ainda está aqui
Mas de toda forma saiba
América
Yo soy loco por ti!

Mundo Livre

salve zapata!




"..Sandino, Marcos... milhões de heróis se acotovelam em nossas telas e nós os velamos em nossas salas chupando balas......."

fred zero quatro

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

A Hora Absurda


O teu silêncio é uma nau com tôdas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e
entanto
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte...

Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E tôdas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos
candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Tôdas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos....
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras,
Endireitar à fôrça a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como

nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema --- Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

4-7-1913


Pessoa