quinta-feira, 26 de junho de 2008

“Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu”.

Alberto

sábado, 21 de junho de 2008

noite de nupcias

No apartamento, ela retira o vestido empoeirado de noiva, guardado desde os tempos em que projetava o futuro herdado dos pais nas brincadeiras de cozinha com as colegas de infância. Tasca um batom vermelho na boca, e a pele morena realça ainda mais o branco.

Um branco...

Mata o que sobrou do whisky da noite anterior e procura a porta daquele apartamento. Se enrosca numa gravata e rouba o paletó amarrotado para enfrentar a neve de anos. Com a boca pastosa por mais alguns goles, não encontra a porra da chave em lugar algum. Apalpa o corpo gelado e rígido de um homem no chão, sente o volume do molho no bolso da calça e sai. Relutante em frente ao corredor, volta. Abre o armário, pega um cobertor velho e separa o cadáver do piso frio.

Sentada no colo de um gordo siciliano, ela pede mais uma garrafa de vinho. Gira a cabeça pelo bar, entediada com aquela língua percorrendo seu corpo, e vê de longe um rosto familiar. Era o puto de um tio, que vem em sua direção, esquecido do passado, agarrando-a pela bunda. Ela empurra o sujeito com asco e pergunta num italiano arrastado de onde vinha. "Brasil". Numa decisão rápida, pega-o pelo braço, chama um táxi e, enquanto é mordida por aquelas mãos nervosas, olha atentamente, resgatando dos detalhes do rosto daquele homem uma parte da sua história.

No apartamento, ela retira o vestido empoeirado de noiva, guardado desde os tempos em que projetava o futuro herdado dos pais nas brincadeiras de cozinha com as colegas de infância. Tasca um batom vermelho na boca, e a pele morena realça ainda mais o branco.


Adriana Fricelli

Carta aos puros

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis Puros
Em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alvar dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a neon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons chamam de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que comprais com a esmola feita ao pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maisculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mais viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria

Ó vós, homens de sigla; ó vós, homens de cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.


Vinícius