terça-feira, 21 de outubro de 2008

Espera


"Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto..."
FP, hora absurda

Seu silencio é para mim uma longa viagem. Meus olhos eternamente deitados sobre o horizonte, sem nada avistar, qualquer vento ou chuva, resquícios do calor de ontem. Ouço-o atenta, água em queda lenta, e por um momento todo o mundo não fez sentido. Ouço-o concentrada, disciplinada, como se isso fosse mesmo capaz de transformá-lo em qualquer coisa grande inalcançável e me tornasse diferente de antes no depois, como tu voltará, se não se esquecer pra sempre no indizível da imagem desbotada que tornouse a lembrança que tenho de você. No depois. Ouço, eu mesma impenetrável, e pareço transformarme na moldura deste quadro sem cores. Olho para a paisagem inexpressiva com os olhos nostálgicos de quem espera, como aqueles que aguardam a chegada dos mortos da guerra, dos filhos que cresceram, das nuvens que nunca mais choveram. Seguro cambaleante o impraticável ficar de pé - e não sucumbir ao desejo de chorar, de sumir, de dormir para sempre. A verdade é que havia tempo meus dias não eram tão cheios de compromissos inadiáveis. Acordo para executar o que me cabe, tentando não pensar. Mas tudo em volta é como se não existisse dentro do seu silencio. Nem o chão e nem os sons da cidade. Tão somente uma névoa roxo escuro e negro “é como se você fosse andando... uma vasta planície, vai andando vai andando, é tardezinha, há até uma certa euforia, um vínculo entre você e aquela extensão... de início parece areia, brilha um pouco, vai anoitecendo... que dor”.

carolina m.
trecho: hilda hilst, estar sendo ter sido
img: www.davidshrigley.com

Estar sendo, ter sido

:: trechos




'A solidão tem cor, é roxo escuro e negro... é como se você fosse andando... uma vasta planície, vai andando vai andando, é tardezinha, há até uma certa euforia, um vínculo entre você e aquela extensão... de início parece areia, brilha um pouco, vai 'anoitecendo... que dor Matias... onde? Não, não, é isso de ir anoitecendo, e você vê rostos na amplidão, vaguezas, máscaras, umas se parecem... não, umas desmancham-se assim que aparecem, perfis também... flores também'




'Enfim me deixam. Modere-se, diz Matias. por que? Por que não posso beber até ficar um macaco raivoso, um bode, ou um gambá ou um quati ou um pobre jumento com o peito em chamas e alguém lhe retalhando o peito? Por que? Porque não posso morrer bêbado, incendiado. retalhos da minha carne espalhados pela sala, longas tiras de sangue serpenteando pelas tábuas largas do assoalho, por que não morrer indecente, colérico vomitando, as fezes escorrendo, óóóóóó chamem meus gansos, meus cachorros, chamem aquele desesperado cavalo-inteiro-chaga sendo vergastado por um pulha louco, ali naquele atalho. Eu vi. E alguns riam. A corja humana sempre ri da dor suprema, do estertor dos bichos-ninguém. Sou um bicho-ninguém olhando para o alto, talvez um sapo, um cão pelado, alguém me espanca as patas as costas, salto, encolho-me nos cantos, vem Jeová aos berros: Vottorio! Vittorio! Ama-me! é para o teu bem o sofrimento! É luz sofrer! Dou bengaladas no ar, estou furibundo: sai cornudo nascido do nada, é porque és incriado, sem mãe, é por isso que odeias os que tiveram um ventre como casa, é porque nem casa tens que sobrevoas teus pântanos para ver se encontras um irmão-alguém, porque és único, sem parecença, um olho terror, um olho-abismo, um dissoluto olho-ígneo, um olho condenado à eterna solidão... sim, porque ninguém quer ser o medo de si mesmo. E não podes morrer. A cada dia sugeres aos homens as mais torpes invenções, tudo isso para ver se tu mesmo cais morto, e contigo o imundo que inventaste.'




'Suportar o que percebo dos humanos. Que nojeira. Eu e minhas tripas. Que nojeira também. E o medo que vem vindo derramado, pustulento, às seis da tarde, às cinco da manhã. Anda cravado de espinhos, o sol-kadush se esconde de mim, beijo a mínima frincha de luz, um milímetro de luz debaixo da porta.'




'Quando há fome a poesia é também pobre.'
Don deo




'Ainda estou sóbrio, há um vento polpudo lambendo as bochechas, não há ninguém mais na praia, só um frango negro (ou é um corvo?) e um cachorro mais triste do que a tal fita preta, ele olha igual a mim o horizonte, tento fazer com que se aproxime, vem, vem cachorro! Ele sai correndo, teme os humanos, os pulhas se que dizem feitos à maneira Daquele, nós os imundos, os grotescos e as palavras sempre entupindo arcas armários cestas...'
Ai como eu queria AGORA
Existir em Vega, Canopus
E ser um feixe, um eixo
Um seixo.
Negro? sépia? rosado?


I

Era uma vez dois e três.
Era uma vez um corpo
E dois pólos: alto muro
E poço. Três estacas
De um todo que se fez
Num vértice, diáfano,
Noutro espessura de rês
Couro, solo cimentado
Nem águas, nem ancoradouro.

II

E certa longitude
Onde o sol se refaz.
E certa latitude, seta-ilha
Onde o meu peito pulsa
Seta e sangue
Num percurso pasmado de agonia.

III

Aqui me vês. Dois pólos
Tão distantes e no entanto
Três: eu e meus dois horizontes.

IV

Dois hemisférios. Um e dois
Agapantos
Trespassados de um tempo
Ora em remanso e lassitude
E sombra

E outro de luz, pilar de bronze
Cimo esbraseado se aquecendo.
Aqui me crês.

V

Espaço-tempo de amor
Espaço curvo.
Sobre o de mim AGORA
Te curvaste

E eu já não era
Aquele primeiro
De sal e trigo
De sal e espera.
De sal

Rota crivada de luz
Eu era.

VI

De água.
De água e matéria
Arquitetada.

Ai, esse prisma
Que se rompe
Ai, o existir mais limpo
Em nós que se corrompe
Ai de nos
Ligaduras de prata sobre a boca
Ai de mim

Buscando a palavra

Buscando a palavra morta.

VII

As coisas do sangue.
As coisas que se farão.
A clarabóia e o poço
Num só eixo

E o meu cantar numas gargantas
De estrôncio
Ai, noventa vezes
Me cantarão em desleixo

VIII

Um rio negro
E uma esfera de aço
Onde cravei meus pés.

Pássaros
E esferas de pedra
Onde deixei meu passo.

IX

E tanta coisa mais
Havia, e tanta coisa resplende
Sobre o teu regaço.
Vertente esbraseada, travessia.

X

E descontínuo
Repito e enlouqueço:
É pervinca
É chamalote
É rumorejo
A palavra que busco?

Eu te pergunto:
Alguma coisa de ti
Sobriedade ou centelha
Há de ficar em mim

Ou eternamente apenas
Me circundo?

XI

E digo ainda:
Amor e morte
Conjura breve

Solta-me.
Revivescido
Eu digo agora

Amor e vida:
Toma-me.

XII

Toma-me. Avesso.
Ou diluído
Toma-me ANTES
Dessa coisa escura.

É medusa ou escama
Essa defunta clara
Essa algidez perdida
Na planura?

É palavra
essa que se levanta AGORA
prodigiosa?

XIII

Ai, é:
Imagem sol
Imagem esfera
Monto
AGORA sobre o teu dorso
Ereto
Planisfera uma e vertical
Plena
Umasómultiplamatéria.




Hilda, Estar sendo, Ter sido

O seu amor

O seu amor
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ser o que ele é
Ser o que ele é
Ser o que ele é.