quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Começando a amar, 1791 – 1796


O Agiota Desonrado Yankel D levou a menininha para casa naquela noite. Agora, disse ele, vamos subir o primeiro degrau. Aqui estamos. Esta é a sua porta. E esta é a sua maçaneta que eu estou abrindo. E aqui é o lugar onde pomos os sapatos quando entramos. E aqui é o lugar onde penduramos os casacos. Ele falava como se ela conseguisse entendê-lo, nunca em tom agudo ou em monossílabos, e nunca com palavras sem sentido. Isto que eu estou lhe dando é leite. Vem de Mordechai, o leiteiro, que você vai conhecer um dia. Ele tira o leite de uma vaca, o que pensando bem é uma coisa muito estranha e perturbadora, de modo que não pense nisso... Esta é a minha mão, alisando o seu rosto. Algumas são canhotas e outras são destras. Ainda não sabemos o que você é, porque você só fica sentada aí e deixa que eu faça tudo... Isto é um beijo. É o que acontece quando os lábios são comprimidos e encostados em alguma coisa, às vezes outros lábios, às vezes uma bochecha, às vezes outra coisa. Depende... Isto é o meu coração. Você está tocando nele com a mão esquerda, não porque seja canhota, embora talvez seja, mas porque eu estou segurando a sua mão junto ao meu coração. O que você está sentindo é o batimento do meu coração. É isso que me matém vivo.
Ele fez uma cama com jornais amassados numa assadeira funda e colocou-a delicadamente dentro do forno, para que ela não fosse perturbada pelo ruído da pequena cachoeira lá fora. Deixava a porta do forno aberta, e ficava sentado durante horas olhando para ela, como alguém poderia ficar vendo um pão crescer. Via o peito dela subir e descer rapidamente; os dedos formavam punhos e se abriam, enquanto os olhos se estreitavam sem razão aparente. Será que ela está sonhando? perguntava-se ele. E caso esteja, com o que sonham os bebês? Ela só pode estar sonhando com a vida antes do nascimento, assim como eu sonho com a vida após a morte. Quando ele a tirava do forno, para alimentá-la ou simplesmente segurá-la, o corpo dela estava coberto de letras. O TEMPO DE MÃOS TINGIDAS FINALMENTE ACABOU! CAMUNDONGO SERÁ ENFORCADO! Ou: SOFIOWKA ACUSADO DE ESTUPRO, ALEGA POSSESSÃO POR PERSUASÃO DO PÊNIS, TORNOU-SE “FORA DE MÃO”. Ou: AVRUM R MORTO EM ACIDENTE NO MOINHO DE TRIGO, DEIXA UM GATO SIAMÊS PERDIDO DE QUARENTA E OITO ANOS AMARELADO, GORDUCHO, MAS NÃO GORDO, APRESENTÁVEL, TALVEZ UM POUCO GORDO, ATENDE POR “MATUSALÉM”, TÁ LEGAL, GORDO PRA CARALHO, QUEM O ENCONTRAR PODE FICAR COM ELE. Às vezes ele a ninava nos braços ate ela adormecer, lendo o que estava escrito no corpo dela, e ficava sabendo de tudo o que precisava saber sobre o mundo. Se não estivesse escrito nela, não era importante para ele.
Yankel perdera dois filhos, um devido á febre e o outro ao moinho industrial de trigo, que todo ano, desde que fora inaugurado, tirava a vida de um membro do shtetl. Também perdera um esposa, não para a morte, mas para outro homem. Ao voltar de uma tarde na biblioteca, encontrara um bilhete cobrindo o SHALOM! do capacho da porta da sua casa: Precisava fazer isso por mim.
Lilla F remexia o solo perto de uma das suas margaridas. Bitzl Bitzl estava parado à janela da cozinha, fingindo esfregar a bancada. Shloim W espiava através do bulbo superior de uma das ampulhetas de que já não conseguia mais se separar. Ninguém dissera nada enquanto Yankel lia o bilhete, e ninguém dissera nada depois, como se o desaparecimento da esposa dele fosse uma coisa absolutamente comum, ou como se jamais houvessem notado que ele fora casado.
Porque ela não enfiara aquilo embaixo da porta? perguntara-se ele. Porque não dobrara o bilhete? Aquilo parecia um bilhete qualquer que ela lhe deixara, do tipo: Você pode tentar consertar a aldrava quebrada? ou Volto logo, não se preocupe. Era muito estranho que um tipo de bilhete – Precisava fazer isso por mim – pudesse ter a mesma aparência: trivial, mundana, nada. Ele poderia tê-la odiado por ter deixado o bilhete ali á vista de todos, poderia tê-la odiado pelo conteúdo da mensagem, prosaica e sem adornos, sem qualquer pista que indicasse, sim, isso é importante, este é o bilhete mais doloroso que já escrevi, sim preferiria morrer a ter de escrever isto novamente. Onde estavam as lágrimas secas? Onde estava o tremor na caligrafia?
Mas a esposa fora o seu primeiro e único amor, e era da natureza dos habitantes daquele shtetl diminuto perdoar seus primeiros e únicos amores; de modo que ele se forçara a compreender, ou a fingir compreender. Yankel jamais culpara a esposa por fugir com o itinerante burocrata de bigode que fora convocado a ajudar nos confusos trabalhos do vergonhoso julgamento do próprio Yankel; o burocrata podia prometer cuidar dela no futuro, tirá-la daquilo tudo, levá-la para um lugar mais calmo, sem pensamentos, se confissões, sem acordos com a justiça. Não, não era isso. O problema era Yankel. Ela queria ficar sem Yankel.
Ele passara as semanas seguintes bloqueando imagens do burocrata fodendo sua esposa. No chão, com ingredientes culinários. Em pé, ainda de meias. Na grama do quintal da imensa casa nova deles. Imaginava a esposa fazendo barulhos que jamais fizera para ele, e sentindo prazeres que ele jamais lhe pudera proporcionar, pois o burocrata era um homem, e ele não era um homem. Será que ela chupa o pênis dele? perguntava-se. Sei que pe bobagem pensar nisso, que esse pensamento só pode me causar dor, mas não consigo me livrar disso. E, enquanto ela chupa o pênis dele, pois deve chupar, o que ele faz? Fica puxando o cabelo dela para trás a fim de assistir? Fica tocando no peito dela? Fica pensando em outra pessoa? Se for isso, vou matar o sujeito.
Com o shtetl ainda observando – Lilla ainda remexendo o solo, Bitzl Bitzl ainda esfregando a bancada, e Shloim ainda fingindo medir o tempo com areia -, ele dobrara o bilhete em forma de lágrima, enfiara-o na lapela, e entrara. Não sei o que fazer, pensara. Provavelmente deveria me matar.
Não suportava mais viver, mas não suportava morrer. Não suportava pensar que ela estivesse fazendo amor com outra pessoa, mas também não suportava deixar de pensar nela. E, quanto ao bilhete, não suportava a idéia de guardá-lo, mas também não suportava a idéia de destruí-lo. Por isso, tentara perdê-lo. Deixara-o ao lado dos castiçais que gotejavam cera, colocara-o entre pães ázimos a cada Páscoa, largara-o sem cerimônia entre os papéis amassados na escrivaninha atulhada, na esperança de que o bilhete não estivesse mais ali quando voltasse. Mas o bilhete continuava sempre ali. Ele tentava massageá-lo para fora do bolso ao sentar-se no banco diante do chafariz da sereia-prostrada, mas quando enfiava a mão no bolso em busca do lenço, o bilhete estava lá. Escondia-o feito um marcador de página num dos romances que mais detestava, mas o bilhete aparecia vários dias mais tarde entre as páginas de um dos livros ocidentais que só ele lia na aldeia, um dos livros que para ele o bilhete estragara para sempre. Tal como não conseguia perder a própria vida, não conseguia perder o bilhete, que teimava em voltar para ele, ficando com ele como se fosse parte dele. O bilhete era um sinal de nascença ou um membro do seu corpo, estava dentro dele, era ele próprio, o seu hino: Precisava fazer isso por mim.
Ele perdera tantos pedaços de papel ao longo do tempo, além de chaves, canetas, camisas, óculos, relógios e talheres. Perdera um sapato, suas abotoaduras de opala prediletas (nas suas mangas, as franjas dos Desleixados eriçavam-se com rebeldia), perdera três anos longe de Trachimbrod, milhões de idéias que tencionava anotar (algumas totalmente originais, algumas profundamente significativas), seu cabelo, sua postura, pai e mãe, dois bebês, uma esposa, uma fortuna em trocados, e incontáveis oportunidades. Perdera até um nome: ele chamava-se Safran antes de fugir do shtetl, Safran do nascimento até sua primeira morte. Não parecia haver nada que ele não fosse capaz de perder. Mas aquele pedaço de papel não desaparecia jamais, como tampouco desaparecia a imagem de sua esposa prostrada, ou o pensamento de que se ele conseguisse, seria de imenso proveito acabar com a vida.
Antes do julgamento, Yankel-então-Safran era admirado incondicionalmente. Era o presidente (além de secretário, tesoureiro e único membro) do Comitê de Artes Belas e Boas, e o fundador, diretor-geral com vários mandatos, e único professor da Escola de Aprendizado Mais Elevado, que se reunia na sua casa, e cujas aulas eram freqüentadas por ele mesmo. Não era incomum que uma família desse um jantar de vários pratos em homenagem a ele (ainda que não em sua presença), ou que um dos membros mais abastados da comunidade encomendasse um retrato dele a um artista itinerante. E os retratos eram sempre lisonjeiros. Ele era uma pessoa que todos admiravam e de quem todos gostavam, mas que ninguém conhecia. Era como um livro que você se sente bem ao segurar, sobre o qual pode falar sem ter lido a obra, e que pode até recomendar a outros.
A conselho de seu advogado, Isaac M, que desenhava aspas no ar a cada sílaba que pronunciava, Yankel se declarara culpado de todas as acusações de procedimento fraudulento, na esperança de que isso reduzisse a sua pena. Acabara perdendo a licença de agiota. E, além da licença, perdera seu bom nome, que é, como se diz, a única coisa pior do que perder a saúde. Os transeuntes debochavam dele, ou resmungavam entre dentes nomes como patife, trapaceiro, cachorro, puto. Ele não teria sido tão odiado se não houvesse sido tão amado antes. Mas junto com o Rabino-Variedade-de-jardim e Sofiowka, era um dos vértices da comunidade – o vértice invisível – e com a vergonha sobreveio-lhe uma sensação de desiquilíbrio, um vazio.
Safran começara a percorrer as aldeias vizinhas, encontrando trabalho como professor de teoria e execução do cravo, consultor de perfumes (fingindo ser surdo e cego para alcançar alguma legitimidade face à falta de referências), e até um malsucedido empreendimento como o pior cartomante do mundo – Não vou mentir para você e dizer que seu futuro é cheio de promessas... Acordava toda manhã com o desejo de agir corretamente, de ser uma pessoa boa e significativa, de ser, por mais simples que isso pudesse parecer e impossível que fosse na realidade, feliz. E ao longo de cada dia o seu coração afundava, do peito para o estômago. No começo da tarde ele tinha a sensação de que nada estava certo, ou de que nada era certo para ele, e sentia o desejo de ficar sozinho. À noite ele se realizava: sozinho na magnitude de seu pesar, sozinho com sua culpa, difusa, sozinho até na sua solidão. Não estou triste, repetia ele sem parar, Não estou triste. Como se um dia pudesse se convencer disso. Ou se enganar. Ou convencer os outros – a única coisa pior do que ficar triste é deixar os outros saberem que você está triste. Não estou triste. Não estou triste. Pois sua vida tinha um potencial ilimitado para a felicidade, exatamente por ser um aposentado branco e vazio. Ele adormecia com o coração ao pé da cama, feito um animal domesticado que não fazia parte dele. E a cada manha acordava com o coração engaiolado novamente nas costelas, um pouco mais pesado, um pouco mais fraco, mas ainda bombeando. E lá pelo meio da tarde sentia novamente o desejo de estar em outro lugar, de ser outra pessoa, de ser outra pessoa que estivesse em outro lugar. Não estou triste.
Depois de três anos ele voltara ao shtelt – sou a prova definitiva de que todos os cidadão que partem acabam voltando – e passar a viver discretamente, feito uma franja dos desleixados costurada à manga de Trachimbrod, obrigado a usar aquela horrível conta em torno do pescoço, como marca de sua vergonha. Mudara seu nome para Yankel, o nome do burocrata que fugira com sua esposa, e pedira que ninguém jamais voltasse a chamá-lo de Safran (embora achasse que ouvia aquele nome de vez em quando, resmungado às suas costas). Muitos dos antigos clientes haviam voltado, e embora se recusassem a pagar as taxas do seu período de apogeu, ele conseguira se restabelecer no shtelt onde nascera – como todos os exilados acabavam por tentar fazer.
Quando os homens de chapéu preto lhe deram o bebê, Yankel sentiu que ele também era apenas um bebê. Com a chance de viver sem desonra, sem necessidade de consolo por uma vida vivida erradamente, a chance de ser novamente inocente, simples e impossivelmente feliz. Deu à menina o nome de Brod, em homenagem ao rio onde ela curiosamente nascera, e um pequeno cordão com uma diminuta conta de ábaco, para que ela jamais se sentisse deslocada no que seria a sua família.
A mãe da mãe da mãe da minha tataravó foi crescendo, sem se lembrar de nada, é claro, e nada lhe foi dito. Yankel inventou uma história a cerca da morte prematura da mãe dela – indolor, durante o parto – e respondia às muitas perguntas que surgiam do jeito que achava que causaria menos sofrimento à menina. Fora a mãe que lhe dera aquelas belas orelhas grandes. Era o senso de humor da mãe que todos os meninos admiravam tanto nela. Yankel falava das férias que ele e a esposa haviam passado (quando ela arrancara uma farpa do seu calcanhar em Veneza, quando ele fizera um desenho dela em lápis vermelho diante de um chafariz em Paris), mostrava-lhe cartas amorosas que os dois haviam trocado (escrevendo com a mão esquerda as da mãe de Brod) e a punha na cama com histórias do romance deles.
Foi amor à primeira vista, Yankel?
Eu me apaixonei pela sua mãe até antes disso – só pelo cheiro!
Conte novamente como ela era.
Ela se parecia com você. Era linda, com esses olhos que não combinam, feito você. Um azul e um castanho, feito os seus. Ela tinha os mesmos maxilares, e a mesma pele macia.
Qual era o livro predileto dela?
A Gênese, é claro.
Ela acreditava em Deus?
Nunca quis me dizer.
De que tamanho eram os dedos dela?
Deste tamanho.
E as pernas?
Assim.
Conte novamente como ela soprava no seu rosto antes de beijar você.
Bom, é isso mesmo, ela soprava nos meus lábios antes de me beijar, como se eu fosse uma comida muito quente e ela fosse me comer!
Ela era engraçada? Mais engraçada do que eu?
Ela era a pessoa mais engraçada do mundo. Exatamente como você.
Era bonita?
Era inevitável: Yankel se apaixonou pela esposa inexistente. Acordava de manhã e sentia falta do peso que jamais afundara a cama ao seu lado, lembrava-se detalhadamente do peso de gestos que ela jamais fizera, e ansiava pelo peso inexistente do braço inexistente dela no seu peito demasiadamente real. Sentia que a perdera. E realmente a perdera. À noite, relia as cartas que ela jamais lhe escrevera.

Queridíssimo Yankel,
Logo estarei ao nosso lar, e portanto você não precisa ter tantas saudades de mim, por mais doce que isso possa ser. Você é tão bobo. Sabe disso? Sabe o quanto você é bobo? Talvez seja por isso que eu amo você tanto, porque também sou boba.
Aqui é maravilhoso. É muito bonito, como você prometeu que seria. As pessoas me tratam bem, e eu estou comendo bastantee, coisa que só menciono porque você vive querendo saber se estou me cuidando. Bom, estou, de modo que não precisa se preocupar.
Sinto muita saudade de você. É quase insuportável. Penso na sua ausência quase todos os minutoss de todos os dias, e isso quase me mata. Mas é claro que logo voltarei a você, e não terei mas de sentir a sua falta, e você não terá de saber que algo, tudo, está faltando, que aquilo que está aqui é apenas o que não está aqui. Beijo meu travesseiro antes de ir dormir e imagino que é você. Isso parece algo que você poderia fazer, eu sei. Provavelmente é por isso que ajo assim.

A coisa quase funcionou. Ele já repetira os detalhes tantas vezes que era quase impossível distinguí-los dos fatos. Mas o bilhete real teimava em reaparecer, e ele tinha certeza de que era isso que o afastava daquela coisa simples e impossível: a felicidade. Precisava fazer isso por mim. Brod descobriu o bilhete um dia, quando tinha apenas alguns anos de idade. O troço se enfiara no bolso direito dela, como se tivesse uma mente própria, como se aquelas cinco palavras rabiscadas fossem capazes de querer infligir a realidade. Precisava fazer isso por mim. Ou ela percebeu a imensa importância daquilo, ou não lhe deu importância alguma, pois jamais tocou no assunto com Yankel. Mas colocou o bilhete na mesinha-de-cabeceira dele, onde ele o acharia à noite, após reler outra carta que não era da mãe dela, nem da sua esposa. Precisava fazer isso por mim.
Não estou triste.



'Tudo se ilumina', de Jonathan Safran Foer. RJ, Rocco, 2005. Tradução de Paulo Reis e Sérgio Moraes Rego. p.59-67






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