sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

TRANSCENDÊNCIA, ESPERANÇA E ÊXTASE

Uma visão histórica da paixão e do divertimento político


Talvez o segredo mais bem guardado do nosso tempo seja que a política, como prática democrática, pode ser "divertida", não apenas no sentido do entretenimento mas também como algo capaz de se tornar profundamente estimulante e até de criar momentos de puro êxtase. A minha geração teve um vislumbre disso em Maio de 1968, e noutros momentos dessa década, numa altura em que pessoas desconhecidas se abraçavam nas ruas e o impossível parecia, por um instante, ao alcance da mão. As rebeliões produzem de vez em quando momentos como estes, de transcendência e de esperança. Multidões dançaram nas ruas de Havana quando Batista fugiu, em 1959; 30 anos depois, dançaram também em cima do muro de Berlim, quando a Alemanha Oriental sucumbiu ao movimento democrático. Houve festa na Espanha Republicana dos anos 30, e uma "anarquia embriagada" em São Petersburgo, durante 1917. Em momentos como estes a política transbordou das barreiras dos partidos, dos comitês, das eleições e da legislação, tornando-se uma espécie de festa.

Ninguém imagina hoje que o processo político possa ser fonte de uma paixão transcendente. Por toda parte, a participação em eleições encontra-se em queda, até mesmo em lugares, como é o caso dos países ex-comunistas, nos quais seria talvez de se esperar que as eleições com múltiplos partidos tivessem o encanto da novidade. Nada demonstra melhor o recuo emocional do processo democrático do que as convenções dos partidos políticos nos Estados Unidos, que alcançaram um tão profundo nível de tédio em 1996 que as redes de televisão chegaram a considerar a possibilidade de estarem ausentes em 2000.

Nas raras ocasiões em que hoje deparamos com ela, a paixão política talvez pareça exótica, anacrônica, como o vestígio de um passado heróico. Um colunista da Harper’s, por exemplo, assistiu em 1999 a um concerto em Madrid, comemorativo da presença da Brigada Lincoln na Guerra Civil de Espanha, relatando então: "...o espaço está em ebulição. A paixão está no ar, um aroma fortemente intoxicante que se saboreia ao mesmo tempo que se inala... Quando Labordeta... começa a tocar a sua ‘Canción de la Libertad’, eles enlouquecem. Cantam em coro, fazendo tremer o teto do estádio sobre os seus pilares. Milhares de jovens punhos enchem o ar. Por todo o lado há gente a chorar... Eu próprio tenho problemas para controlar o choro, ainda que não saiba explicar o motivo. Talvez porque uma paixão política como esta pareça, na minha vida, perdida para sempre".

Não possuímos um vocabulário que sirva para descrever este tipo de experiência, pelo menos em inglês. Há formas ricas e matizadas para falar do amor entre duas pessoas, desde a simples atração sexual até ao prazer de viver em comum e ao compromisso, mas existem poucas palavras para descrever esse amor, se é disso que se trata, que pode unir milhares de pessoas num dado momento. "Comunidade" é a palavra que mais provavelmente nos virá à cabeça, mas nas bocas dos "comunitaristas" do centro político (dos quais Hillary Clinton é a mais conhecida representante) converteu-se num outro sinal do conformismo moral que os dirigentes conservadores constantemente procuram impor. Além disso, os grandes momentos de euforia política não são celebrações de comunidades pré-existentes, mas antes a criação de comunidades a partir de grupos de pessoas que, na sua maioria, anteriormente se não conheciam. Na multidão revolucionária, as velhas hierarquias e os conflitos dissolvem-se. Brancos e negros marcharam juntos nos movimentos americanos dos anos 60; católicos e huguenotes abraçaram-se durante a Revolução Francesa. Unidos por um objetivo comum e fortalecidos pela força do número, somos capazes de nos "enamorar" de completos estranhos.

"Amor" é de fato a palavra que os participantes usaram uma e outra vez para descrever os arroubos da experiência revolucionária. O romancista Flaubert, que participou na Revolução Francesa de 1848, descreve uma personagem que, envolvida no "magnetismo da multidão entusiasmada... tremia na exaltação de um amor imenso, de uma ternura suprema e universal, como se o coração de toda a humanidade batesse naquele momento no seu peito." De forma muito parecida, uma testemunha da Comuna de Paris de 1871 escreveu: "Abraça-me, camarada, que partilhas do meu cabelo grisalho! E tu, rapaz... vem a mim também!... Parece que a alma da própria multidão enche o meu peito. Oh! Se só a morte me pudesse levar, se uma bala apenas me pudesse matar no meio desta luz de ressurreição."

As fronteiras do eu dissolvem-se, o corpo expande-se, na imaginação, para abarcar a multidão. Estes são sentimentos efêmeros, mas podem ser preservados por intermédio da arte, ou mantidos e ampliados através do ritual. Em 1790, por exemplo, no primeiro aniversário da Tomada da Bastilha efetuaram-se em toda a França festividades que procuraram recriar a excitação da insurreição original. O historiador Jules Michelet reportava que na cidade de Saint-Andèol, "as pessoas... corriam a abraçar os demais, e, de mão na mão, construíram uma imensa farândula(dança provençal), a qual incluía a todos sem exceção, estendendo-se pela cidade, pelo campo, desde as montanhas de Ardéche, até aos prados do Reno, ao mesmo tempo que o vinho corria pelas ruas..."

As ciências do comportamento humano têm pouco para dizer acerca da experiência do êxtase coletivo. No domínio da psicologia, Freud foi beber no escritor francês conservador Gustave Le Bon, que via o comportamento das massas revolucionárias como algo de perigoso e doentio. Freud admitia que o gozo coletivo da multidão pudesse ser de uma singular intensidade: "as emoções dos homens são alteradas... a um nível que raramente alcançam noutras condições, sendo uma experiência de prazer..." Tratou porém de incluir estes sentimentos extraordinários dentro do conhecido triângulo edípico da família nuclear: Os membros da multidão demonstravam "uma extrema paixão pela autoridade", "uma sede de obediência" a um líder que era apenas o substituto do "temido pai originário." O fato de as massas insubmissas se encontrarem, pelo menos ao nível da experiência consciente, quase sempre comprometidas com a queda de autoridades tradicionais – reis e ditadores – não impressionou o grande patriarca da psiquiatria ocidental.

A sociologia contemporânea possui pouco mais para oferecer. Reagindo contra a perspectiva reacionária de Le Bon, os sociólogos americanos tenderam a ignorar os aspectos emocionais dos movimentos sociais, exceto no caso dos grupos fascistas e racistas, nos quais as emoções suscitadas são em regra o ódio e o medo. Como escreveu nos inícios dos 1980 um dissidente desta tradição, o sociólogo norte-americano John Lofland: "Historicamente, os acadêmicos sociólogos do comportamento coletivo estudavam fenômenos de massas e multidões que se encontravam dominados por um ou outro de três tipos de intensa excitação emocional: medo, hostilidade, e prazer... Com o decorrer do tempo, o terceiro elemento desta trindade – o prazer – foi gradualmente posto de lado... Quem fala hoje em dia seriamente de ‘multidões em êxtase’, ‘epidemias sociais’, ‘febres’, ‘histerias religiosas’, ‘apaixonados entusiasmos’, ‘danças frenéticas e desenfreadas’?..."



Ao invés, os movimentos políticos progressistas são analisados inteiramente como empresas racionais nas quais as pessoas, motivadas por ideologias, guiadas por "fatores organizativos," e inseridas em "estruturas sociais," prosseguem metas estritamente instrumentais. Assim, o estudo do prazer coletivo foi limitado à observação de "delírios" e de "modas".

Diante da ausência de análises acadêmicas, o nosso conhecimento da paixão coletiva parece-se um pouco com a compreensão vitoriana do sexo. Os adultos vitorianos achavam que os corpos humanos podiam unir-se de formas as quais, ainda que impronunciáveis, conduziam muitas vezes à procriação. Muitos, se não todos eles, devem também ter sabido por experiência própria que tais emparelhamentos podiam constituir momentos de intenso prazer. Mas não existia forma de falar acerca dos prazeres do sexo; a palavra "orgasmo," por exemplo, não entrou no vocabulário popular senão pelos meados do século XX. De forma idêntica, sabemos hoje que grandes quantidades de pessoas podem juntar-se de formas que podem nos parecer, como espectadores, excitantes e até embriagadoras; e isto o sabemos porque a televisão nos mostra a todo o instante motins, revoluções, e as "histerias" dos amantes dos desportos e da música. Mas não possuimos um vocabulário para os sentimentos que podem ser inspirados e criados por tais eventos. Até aqueles de nós cujas identidades políticas foram forjadas em grandes momentos de insubmissão permanecemos, em regra, mudos acerca das profundidades emocionais do nosso compromisso. Podemos falar "dos temas", mas não dos estados de êxtase.

Existe sem dúvida alguma, para falar apenas da tradição européia, uma "história escondida" de êxtases coletivos, à espera de ser desenterrada e colocada num contexto politicamente compreensível. Muito antes de existir algo que pudéssemos reconhecer como movimentos "políticos", existiam os movimentos extáticos dos oprimidos, os quais usavam com frequência a linguagem e os símbolos da religião. Os antigos gregos, por exemplo, estavam familiarizados, desde os tempos de Homero, com o fenômeno do menadismo, através do qual os adoradores de Dionísio, quase exclusivamente mulheres, periodicamente abandonavam as suas tarefas domésticas para subir às montanhas, onde bebiam vinho, bailavam em êxtase até de madrugada e, por vezes, segundo se conta, capturavam animais vivos, esquartejando-os e comendo-os crus. É difícil, porém, determinar em que medida os relatos do menadismo foram distorcidos pelos preconceitos e pelos medos dos seus contemporâneos do sexo masculino. Mas é consensual entre os acadêmicos que as mênades representavam um culto histórico real que atraía muito as mulheres, as quais se encontravam, por essa altura, completamente excluídas de qualquer outra forma de vida pública. Se elas não podiam rebelar-se em sentido literal, podiam ao menos desfrutar da descarga emocional destas falsas rebeliões levadas a cabo sob a forma de ritos devotos, ainda que não ortodoxos.

A Europa experimentou fenômenos similares, ainda que menos ritualizados, com as "dança-manias" dos séculos XIV e XV. Começando nos alvores da Peste Negra que dizimou a Europa na década de 1370, turbas de gentes – quase inteiramente das classes mais humildes – "...formavam círculos com as mãos entrelaçadas, parecendo ter perdido todo o controle de si mesmos, continuavam dançando... juntos durante horas em selvagem delírio, até que por fim tombavam no chão completamente exaustos."

Os padres revelavam-se impotentes para deter os dançarinos, que às vezes afirmavam que aquela dança honrava a um determinado santo, e outras vezes que era o resultado de uma maldição imposta como castigo pelos pecados. Desde o século XIX, a explicação acadêmica convencional tem sido que os frenesis de dança devem ter sido induzidas por alguma poção química, talvez a ergotina, que se relaciona com o LSD e que pode contaminar as culturas do centeio. Mas tais explicações não dão conta da reconhecida capacidade contagiante das folias, cujos participantes são recrutados facilmente entre os transeuntes. Uma melhor explicação poderia ser que os delírios representavam uma espécie de proto-rebelião, em parte provocada pela campanha da Igreja para suprimir a antiga tradição do baile nos cemitérios, e dentro das próprias igrejas. A dança extática em círculos – transformando-se por vezes naquilo que a igreja via como uma orgia desenfreada – tinha sido parte da tradição da fé cristã pelo menos desde o século III, e, antes ainda, também das tradições pagãs. Com o passar do tempo, expulsos dos seus cenários habituais, os dançarinos foram para a rua, a partir da qual lançavam muitas vezes os seus desafios, ameaçando, ou atacando abertamente, os padres.

Durante a Baixa Idade Média, a igreja católica eliminou gradualmente, não apenas as danças religiosas e as seitas milenaristas, mas também as transgressões festivas associadas com a Festa dos Loucos, na qual os próprios sacerdotes haviam, em dada altura, desempenhado um papel dirigente. Expulso aos empurrões dos cenários religiosos, o êxtase coletivo apenas conseguirá exprimir-se através do espaço mais secular do Carnaval. Num certo sentido, o Carnaval europeu da Baixa Idade Media e dos inícios do período moderno, representa uma forma institucionalizada das folias da dança. O povo celebrava, bebia e dançava durante dias sem parar, geralmente em círculos, filas ou grupos de três. Além disso, os carnavais incluíam habitualmente competições desportivas, representações dramáticas, elaboradas vestimentas e, às vezes, atividades tão anti-cristãs como o sacrifício de animais e a adoração de deusas pagãs. Aquilo que maravilha os historiadores de hoje é a quantidade "verdadeiramente prodigiosa" de tempo dedicado a essas atividades: os camponeses franceses do século XVI podiam esperar passar um total de três meses por ano, um dia em cada quatro, em festividades de Carnaval. No norte da França, só a celebração anual da fundação da igreja de uma paróquia durava oito dias. Na Espanha do século XVII, um contemporâneo estimava que um total de cinco meses em cada ano eram dedicados aos santos e celebrados com festividades.

Foi o escritor dissidente soviético Mikhail Bakhtin quem resgatou o Carnaval da marginalidade da história, assinalando que este representava uma rebelião ritualizada contra a autoridade em todas as suas formas. No Carnaval, os pobres criavam um "tempo utópico de comunitarismo, liberdade, igualdade e abundância", marcado pela inversão de todas as hierarquias normais: os homens podiam disfarçar-se de mulheres e vice-versa, os laicos de clérigos, enquanto reis e padres eram simbolicamente ridicularizados. Reveladoramente, os mesmos temas de abandono extático e de provocação da hierarquia aparecem na tradição carnavalesca mundial, até em áreas aparentemente não tocadas pela influência européia. Nos inícios do século XVIII, um visitante holandês encontrou os africanos da costa da Guiné celebrando "...uma festa de oito dias acompanhada com todo o tipo de Cantos, Bailes, Saltos, Sátiras e Festividades; tempo durante o qual está permitida uma total liberdade de burla, e o Escândalo é tão altamente exaltado, que eles podem proferir todo o tipo de Insultos, Vilanias e Mentiras acerca dos seus Superiores, assim como dos seus Inferiores, sem serem castigados nem minimamente impedidos."

Como escreveu Bakhtin o riso popular festivo "significa a derrota do poder, dos monarcas terrenos, das classes superiores terrenas, de todos os que oprimem e controlam", pelo menos pelo tempo que duram as festividades. Alguns acadêmicos contestaram a interpretação de Bathkin, assinalando que, em vez de ser uma verdadeira rebelião, "o Carnaval foi sobretudo sentido como uma aventura permitida, uma ruptura aceitável da hegemonia, uma descarga tão perturbadora e relativamente ineficaz como uma obra de arte revolucionária." Porém, considerado como forma de arte popular, o Carnaval foi-se transformando de uma forma crescente, à medida que se entrava na época moderna, em rebelião declarada. Na França do século XVI, as festividades em Maras e Romans tornaram-se uma cobertura para insurreições armadas dos pobres das cidades contra a nobreza. De forma semelhante, os carnavais das Caraíbas, no século XIX, serviram de cenário para numerosas rebeliões de escravos. Como escreveram os acadêmicos britânicos Stallybrass e White: "De fato, impressiona a frequência com a qual os enfrentamentos sociais violentos aparentemente ‘coincidiam’ com o Carnaval… considerar que existe apenas uma ‘coincidência’ entre os carnavais e as revoltas sociais é algo profundamente enganoso, porque… apenas em finais do século XVIII e princípios do XIX – e apenas em algumas regiões – se pode falar razoavelmente de uma política popular totalmente dissociada do carnavalesco."

As primeiras revoluções políticas de massas identificáveis no Ocidente – por oposição aos ocasionais excessos carnavalescos dos séculos anteriores – foram as revoluções americana e francesa de finais do século XVIII. Nelas, pela primeira vez encontramos a emergência de uma hierarquia da direção revolucionária, debates organizados, e aquilo que os sociólogos considerariam como metas racionais. Mas essas primeiras revoluções, com toda a sua mortal formalidade, eram também devedoras das tradições do Carnaval: os rebeldes da América do Norte dançavam à volta das "Árvores da Liberdade", sucessoras das maypoles*, tão centrais nas festividades populares britânicas e francesas. Os aldeãos franceses usavam as maypoles como uma "espécie de alarme visual" para assinalar o despontar de uma revolta. "Não existe dúvida alguma", para a historiadora francesa Mona Ozouf, acerca do "vínculo privilegiado entre a maypole e a alegria coletiva", seja na sua variante "política" ou meramente festiva. Em 1791, por exemplo, os camponeses de Perigord puseram maypoles nas praças públicas, atacaram os símbolos do poder feudal e arrancaram os bancos das igrejas, "tudo isso com certa violência", segundo reportava a Assembléia Nacional de Paris, "mostrando a efusividade da sua alegria". De modo que não é sem certa justiça que Henri Lefebvre, pai intelectual do movimento situacionista francês dos anos sessenta, podia proclamar, "as revoluções do passado eram, sem dúvida, festivais – cruéis sim, mas será que não existe algo de cruel, selvagem e violento em todas as festas?". Da mesma forma que existe, poderíamos juntar, algo de festivo em cada revolução.



Claro que as autoridades tinham começado a ver alguma coisa de perigoso, e até de potencialmente insubordinado, nas festividades populares, muito antes da "era da revolução" do século XVIII. Desde o século XVI que as autoridades de toda a Europa haviam feito campanhas mais ou menos sistemáticas para suprimir todas as formas de diversão das classes baixas, geralmente em nome da moral. Desportos como o futebol, que em épocas medievais envolviam centenas de jogadores de cada vez, foram proibidos, a embriaguez em público penalizada, e foi até vedado o uso de máscaras. Foi proibida a celebração de Carnavais tradicionais, a dança foi atacada como algo de lascivo. "Entre os séculos XVII e XX… apareceram, literalmente, milhares de leis que procuraram eliminar os carnavais e as festividades populares na vida européia… por toda a parte, contra os periódicos reaparecimentos das festividades locais e os seus ocasionais reveses, uma ordem ritual fundamental da cultura ocidental foi posta em xeque: as suas festas, a sua violência, as suas procissões, os seus feriados, os seus velórios, o espetáculo desordenado e o clamor irreverente, foram sujeitos à vigilância e ao controle repressivos".

Subjacente a esta repressão encontrava-se a transição fundamental para o capitalismo industrial. O velho calendário de festividades pode ser encaixado nos ritmos sazonais da vida agrícola, mas não tinha cabimento num mundo regido, pela primeira vez, pelo ponteiro do relógio. No novo esquema burguês das coisas, exemplificado pelo protestantismo emergente, o tempo era dinheiro, e a austeridade uma virtude cardeal. Comerciantes e criados, banqueiros e tecelões, deviam, todos por igual, esquecer a gratificação imediata ao cabo de uma vida de trabalho disciplinado e reservar o seu único dia de descanso, o domingo, para atividades não mais estridentes do que o canto de hinos religiosos. Foi este projeto de séculos de repressão, observou o historiador Norbert Elias, que conduziu à concepção freudiana de que a "civilização" apenas poderia ser conseguida renunciando à espontaneidade e ao sentido do festivo. Por outras palavras, ninguém mais poderá olhar os outros como uma possível fonte de prazer e de energia, convertendo-se as pessoas em competidores, ou o que é pior, em censores, vigilantes ante qualquer sinal de deslize moral. O "eu" era agora concebido como uma espécie de núcleo fechado, isolado de todos os outros eus, para o qual a delirante perda do eu produzida pela festa ou pela revolta festiva apenas podiam parecer aterradores, uma espécie de morte.

Desde logo, o ethos puritano das classes médias emergentes pôs de parte a revolução, a menos puritana de todas as empresas. As revoltas aparentemente espontâneas, festivas, do campesinato e dos pobres da cidade, horrorizaram os líderes intelectuais da Revolução Francesa, os quais empreenderam, como antes deles os padres haviam procurado fazer, a supressão dos carnavais e de todas as outras "formas indecentes familiares do antigo regime". Os chefes revolucionários procuraram trocar "o festival mal planificado, as festas secretas, noturnas, o divertimento ruidoso, o folguedo, a mescla de grupos de diferentes idades, classes e sexos, a orgia" por espetáculos amáveis, dedicados, por exemplo, à "Razão". Com Lênin, a orientação revolucionária desviou-se completamente da antiga tradição da festividade popular. De fato, este escreveu até acerca da sua gratidão em relação aos capitalistas por estes haverem disciplinado as classes trabalhadoras numa espécie de "exército", uma vez que a revolução moderna, marxista-leninista, iria ser uma espécie de guerra. O principal ator desta cruel nova versão da mudança social era o "revolucionário profissional", e a sua paixão exclusiva, fria e ascética, pelo poder.

Em lugar dos prazeres coletivos suprimidos do mundo medieval, as culturas do século XX ofereciam duas alternativas: o prazer privatizado do consumo individual, e o prazer substituto oferecido pelos espetáculos de massas. A idéia de que a satisfação mais profunda poderia ser achada no cenário exclusivo do privado, entre os membros próximos da família, apareceu no século XIX, quando a tradição do Carnaval tinha sido já praticamente aniquilada. Um pastor britânico da época predicava que a felicidade "não consiste em grinaldas e palanques, tambores e trombetas, ou em andar a fazer cabriolas à volta de uma maypole. A felicidade é uma coisa do lar. É algo de tonalidade grave e séria; e que será tanto mais profunda e verdadeira quanto mais limpa estiver do pandemônio da mera diversão".

De forma similar, as festas do Natal, que em tempos havia sido celebrado na Inglaterra com bailes públicos, festejos, bebedeiras e disfarces, passaram para o interior dos lares, para ser enganosamente domesticadas como "assuntos domésticos." Com a emergência de uma cultura do consumo de massas nos anos vinte, o prazer privado – de comidas, de férias e de "entretenimento" – substituiu decisivamente as festas compartilhadas e a excitação coletivamente engendrada das festividades tradicionais. O amor sexual converteu-se numa obsessão pública e em tema de cada canção popular e de cada filme porque era a única ocasião que excluía a perda do eu, tal como antes se passava com a multidão festiva.

Ao mesmo tempo, as festividades participativas e os esportes cederam o seu lugar aos espetáculos de massas: festivais, feiras e carnavais foram substituídos por desfiles oficiais, desempenhando a multidão urbana o papel exclusivo de público. Os esportes populares converteram-se em esportes de espectadores, que não requeriam esforço físico algum e que não ofereciam nenhuma satisfação física. Mas os maiores espetáculos do século XX foram de temática militar: desfiles do Primeiro de Maio, manifestações de Nuremberg e, mais recentemente, a guerra aérea televisionada. O nacionalismo, tal como as inocentes associações esportivas de adeptos da mesma equipe, oferece a nossa única experiência, habitualmente aceitável, de imersão em alguma entidade humana mais ampla, através do papel do patriota que, tal como o adepto, apenas precisa gritar urras. A participação comprometida – o baile, a pantomina, o escarnecer das autoridades – foram substituídos pelo "espectador passivo, que olha em silêncio e assombrado".

A mesma passividade estende-se agora ao âmbito da política, a qual, tal como é muitas vezes notado, se converteu num "esporte de espectadores", provavelmente não muito apaixonante para a maioria das pessoas. Até mesmo o cidadão mais consciente vê o seu papel reduzido a "consumir" as notícias políticas, quase sempre em solidão, e a depositar ocasionalmente o seu voto. E se a eliminação dos divertimentos participativos foi lamentável, o fim da política participativa é verdadeiramente trágico. Aquilo que conhecemos como o processo democrático apenas existe por causa dos movimentos revolucionários dos últimos 200 anos, os quais foram, por sua vez, beber numa tradição muito mais antiga, "pré-política", da festividade das classes baixas (e das mulheres). Não perdemos apenas uma antiga forma de prazer, mas o espírito da criatividade coletiva que deu origem à democracia.

Há ainda leninistas entre nós – se bem existam hoje mais hipóteses destes serem conservadores do que de serem comunistas – que argumentam que é melhor deixar a política para uma elite especializada, longe das paixões da gente comum. Para ultrapassar esta situação, no sentido de uma genuína renovação democrática, precisamos de movimentos sociais que contemplem, e ativamente sejam capazes de gerar, a excitação coletiva de uma grande quantidade de pessoas. Os ativistas sindicais e comunitários mais experimentados entendem isto perfeitamente, procurando construir experiências de solidariedade e dando poder, no contexto das suas atividades, aqueles que não o têm. Também a arte tem um papel a desempenhar no reavivar da capacidade de ligação festiva com os outros, e no renascer da capacidade criativa latente nessas atitudes, entretanto perdidas.



Mas a paixão e a arte não podem ser reduzidas a meros instrumentos para se alcançarem metas políticas. Até gente desesperadamente pobre como os camponeses e os trabalhadores franceses dos séculos XVII e XIX, ou os camponeses maias dos nossos dias, lutou por muito mais do que a simples reparação de dissabores econômicos. O lema dos trabalhadores fabris americanos nos princípios do século XX era "pão e rosas", abarcando na sua luta tanto os meios de vida como as experiências transcendentes que dão algum sentido à sua vida. Tal como escreveu Lefebvre nas vésperas de 1968, a "última cláusula do plano revolucionário é a Festa, redescoberta e ampliada pela superação do conflito entre a vida quotidiana e a festividade"... O que significa dizer que o prazer coletivo é não apenas um efeito colateral dos movimentos políticos igualitários, mas, em última instancia, deve também ser a sua meta: institucionalizar a festa, com a sua desordenada criatividade e a sua euforia coletiva, como um princípio da vida cotidiana.

* Mastros de madeira, erguidas ao ar livre, enfeitadas com flores e tiras de pano, em redor das quais, no início da Primavera, comunidades pré-cristãs de algumas regiões da Europa dançavam de forma ritual. (N. do T.).


Barbara Ehrenreich

Tradução de Rui Bebiano

Janeiro de 2001.

Artigo originalmente publicado, em inglês, na Z magazine (www.zmag.org).

Fonte : Revista NON! (www.zonanon.com).

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