terça-feira, 11 de agosto de 2009

A ARTE E A EDUCAÇÃO: FERRAMENTAS NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA DE RESISTÊNCIA



Este texto é fruto de um convite para escrever sobre uma ocupação de sem-tetos da cidade de São Paulo, Ocupação Prestes Maia, e suas experiências com a arte e a educação. São temas que permeiam um interesse pessoal de pesquisa, que se iniciou com a minha observação e participação dentro do grupo Integração Sem Posse(1). Assim os apontamentos e contribuições neste texto surgem de um olhar na condição de artista e artista professora, que tenta buscar caminhos de atuação e investigar o papel desta condição na realidade abordada. O trabalho parte de uma investigação participativa que pode ser encontrada com mais detalhes na minha tese de graduação(2).

Segregação Espacial

Nas sociedades do mundo globalizado está presente a lógica econômica que define e interfere profundamente a vida social em todos seus aspectos. No campo macro tal lógica, de princípio neoliberal, segrega os países em desenvolvidos, subdesenvolvidos e emergentes, no campo micro, segrega os indivíduos por seu poder aquisitivo espacialmente, gerando um processo de exclusão, e periferização, nítido em grandes centros urbanos, como é o caso da cidade de São Paulo.

No caso do Brasil, oitavo no mundo no que se refere à desigualdade social[3], a distância entre as extremidades das classes sociais cria fenômenos significativos que surgem em resposta a uma violência opressora que se dá visível e invisivelmente. No caso da reivindicação por moradia, esta se estende em todo território nacional e é realizada por uma parcela mais pobre e marginalizada da população, identificada pela ONU como uma das populações vulneráveis[4].

São iniciativas que tentam promover mudanças estruturais a fim de romper este círculo vicioso que se coloca como pré-requisito em direção de uma sociedade mais justa e democrática[5]. No caso da cidade de São Paulo, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), do qual a ocupação Prestes Maia faz parte, tem que se deparar com ciclos e projetos que interferem diretamente na luta dos sem-tetos. A maioria dos participantes é da região norte e nordeste do Brasil e ao chegarem à metrópole vive um impacto cultural por haver uma quebra de identidade cultural e simultaneamente sofrem dificuldades de se estabelecer por falta de acesso a espaços urbanos de qualidade, um processo violento chamado de “ciclo de marginalização”[6]. Assim se observa que a exclusão social está relacionada não apenas a condição sócio-econômica, mas também a origem das famílias.

O centro da cidade apresenta hoje 39.289[7] unidades vazias. Neti, liderança do MSTC, deixa claro em sua fala o porquê de morar no centro: Porque lá já existe tudo, não é preciso levar estrutura. Há escola, hospital, cultura [...] Ninguém vai pagar quatro conduções a uma empregada diarista que mora na periferia[8].

Além disso, há em ação um projeto (em processo em várias cidades do mundo) que influencia diretamente na reivindicação por moradia: a revitalização de áreas centrais. Em 2001 foi criado o projeto Ação Centro que tem como objetivos principais: recuperação de áreas degradadas, melhoria da qualidade ambiental, fomento a pluralidade econômica, inclusão social e reversão do esvaziamento residencial[9]. Aparentemente o projeto se preocupa com todos os requisitos necessários para haver uma intervenção significativa. Mas nos dois últimos governos da prefeitura este projeto tem se mostrado infiel principalmente ao seu penúltimo objetivo.

Novamente os interesses econômicos imperam sobre os interesses humanos e tal política está se caracterizando como um trabalho de “higienização”. Tem-se, portanto uma intervenção que embeleza e desenvolve o comércio da região e ao mesmo tempo retira as populações vulneráveis realizando desapropriação das ocupações, transferências de albergues situados no centro, construção de rampas “antimendigo” ou “antimorador de rua” e transferência de cooperativas de catadores para as periferias.

Ocupação Prestes Maia e a Arte Contemporânea

Dentro deste quadro o Edifício Prestes Maia é um dos alvos de desapropriações desde maio de 2005 quando foi dada a ordem judicial de Reintegração de Posse. Antes deste se tornar uma ocupação ficou 20 anos abandonado. Há 4 anos é moradia de 468 famílias, abrigando aproximadamente 2500 pessoas que vivem em estado de tensão permanente por medo de perderem suas casas. A maior ocupação vertical da América Latina tem duas torres de 20 e 10 andares e nela vivem pessoas que não tem renda suficiente para pagar aluguel, como catadores de papel, porteiros, empregadas domésticas, entre outros. O imóvel está avaliado em 3,5 milhões de reais e apresenta uma dívida de 4,5 milhões de reais.

Em 2003 se iniciou uma relação entre ocupação e artistas contemporâneos com a realização de uma grande exposição de 120 artistas que tomaram todo o espaço da ocupação para exposição. Tal ação teve uma grande repercussão e atraiu muito o olhar da mídia que demonstrou a uma visão exótica e pouco compreensiva publicando matérias em cadernos de cultura de jornais, focando apenas como um evento cultural.

Fabiane Borges, coordenadora do evento, fala sobre a proposta como uma: Coordenação experimental, sem controle de coisa alguma, em tudo esquizofrênica, sem nenhum tipo de financiamento, cuja existência sustentou-se naquelas três semanas de encontro. Nossa única proposta aos artistas foi que entrassem em contato com o espaço com as pessoas, com seus modos de vida e que, a partir desse encontro, se pudessem, se pusessem em obra[10]. Fica claro um caráter experimental, que não tinha uma problemática clara de trabalho, e que inevitavelmente encontrou várias dificuldades no decorrer da ação principalmente por aproximar universos culturais muito distintos.

Em maio de 2005, após sair a ordem de Reintegração de Posse, alguns artistas que haviam participado do evento anterior criaram o grupo Integração Sem Posse, que tem como principal objetivo apoiar o MSTC e a Ocupação Prestes Maia. A partir deste momento tive conhecimento da ocupação pelo grupo e iniciei minha investigação sobre o papel do artista e do artista professor na comunidade.

Como forma de apoio, para chamar atenção da mídia e da sociedade, foram realizados eventos elaborados pelos artistas aos sábados, que se caracterizaram por uma programação muito variada como projeção de vídeos, intervenções, exposição de obras de artistas e oficinas.

Dentro dos eventos existia o objetivo de divulgação da realidade da ocupação na mídia. A estratégia utilizada eram os eventos de arte contemporânea junto a um esforço de trazer renomes da arte para atrair a atenção da sociedade. Nos convites produzidos para divulgação dos eventos ficava implícita a idéia de que visitando um evento de arte contemporânea a pessoa estaria apoiando o movimento de luta por moradia.

Após um mês de observação sobre as ações do grupo percebi que estas estavam muito voltadas para a arte contemporânea e durante esse processo ficou muito marcada a expressão dos artistas e pouco ou nada se via sobre a produção da comunidade local. Além da ausência de expressões locais notava-se também a ausência dos próprios moradores da ocupação nos eventos elaborados pelos artistas.

De fora pra Dentro

A experiência do Prestes Maia e do grupo Integração Sem posse faz parte de uma tendência atual de aproximação entre artistas contemporâneos e movimentos de luta por moradia. Estes aparentemente distintos a princípio tentam unir forças em uma luta que envolve fatores sociais, econômicos e políticos resultantes de uma política neoliberal desumanizadora da sociedade.

Assim, quando se tem um quadro em que arte contemporânea e movimento social se juntam, consequentemente nos leva a pensar que ambos estão com um objetivo comum de transformação da sociedade e da realidade. A arte, por apresentar um discurso à frente do seu tempo e ter se mostrado durante a história da humanidade como uma importante ferramenta de transformação do pensamento humano. E o movimento social que propõe mudanças estruturais na divisão das riquezas, o que consequentemente acarreta em uma luta por uma sociedade mais humana e democrática.

No início as ações desenvolvidas por artistas dentro da ocupação Prestes Maia, se caracterizaram por um experimentalismo ativista. As reuniões realizadas entre o grupo não eram suficientes para fundamentar o trabalho desenvolvido. Dessa forma, se considerarmos os artistas potenciais agentes de transformação da realidade, veremos que se basearem seu trabalho apenas em ações que abandonam uma postura reflexiva que envolva a teoria junto a prática, inevitavelmente criarão um trabalho ingênuo e correrão o risco de favorecer interesses outros. Sobre ações ativistas Paulo Freire alerta os riscos: A tão conhecida afirmação de Lênin: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” significa precisamente que não há revolução com verbalismos, nem tampouco, ativismo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas".

Qualquer profissional que se proponha a trabalhar com um público delicado por seu histórico de opressão, como é o caso da comunidade do Prestes Maia, deve ter claro que estes trabalhos exigem uma postura cuidadosa para não reforçar problemas existentes. Considerar a peculiaridade do público, ter consciência de que os conhecimentos dos agentes de transformação (no caso artistas e artistas professores), são limitados devido a sua condição de classe social, cria uma postura respeitosa para iniciar um diálogo necessário em trabalhos com populações vulneráveis.

Assim, fica difícil imaginar um trabalho significativo apenas baseado em ações com um propósito “midiático” pois ativismo cria uma relação antidialógica entre moradores e artistas.

Na intenção de usar meios de comunicação para a divulgação do problema, percebeu-se que a maioria destes instrumentos da mídia são extremamente tendenciosos e reproduzem um olhar preconceituoso que muitas vezes não condiz com a realidade e propaga a lógica estabelecida. Por outro lado a divulgação atraiu mais simpatizantes a causa do Prestes Maia. Em relação a outra intenção (de atrair grandes nomes de artistas contemporâneos) fatalmente fez com que o movimento se tornasse dependente de ações solidárias dos mesmos, o que não traz uma solução para o problema dos sem-teto, apenas afirma dependências.

O que nos leva a outra discussão: se queremos pensar em uma arte parceira dos movimentos sociais, será coerente realizar nestes locais de ocupação exposições de arte contemporânea? Creio que pode ser válida se a proposta for multiculturalista e considerasse a cultura dos sem-tetos, mas não foi isso que aconteceu no caso do Prestes Maia. Imperou nos eventos as expressões dos artistas e ficou muito evidente a ausência dos moradores, o que de certa forma pode ser entendida como uma resistência (consciente ou inconsciente) à cultura dominante. Toda a elaboração dos eventos era realizada principalmente pelos artistas, o que fazia com que os moradores ficassem em uma postura muito receptiva e pouco participativa, ou seja, os projetos estavam inicialmente sendo elaborados para eles e não com eles.

O papel do artista e do artista professor

Quando consideramos as culturas envolvidas neste caso vemos que a arte contemporânea se caracteriza socialmente por uma produção específica, realizada predominantemente pela classe média e alta, e em um outro extremo há a cultura nordestina que é pouco ou nada valorizada pelos paulistanos.

Acredito que um movimento social pede a criação de uma cultura de resistência, que dificilmente será criada com códigos da cultura dominante ou pela classe dominante. Cada cultura tem seus códigos e para que ela exista e crie sua identidade necessita de ferramentas para criá-la. Nós, artistas contemporâneos, quando produzimos sobre o tema dos movimentos de moradia não estamos criando uma nova cultura, estamos criando objetos com um tema específico e com códigos específicos, que não são os mesmos códigos culturais dos sem-tetos. Assim, se pretendemos desenvolver com os sem-tetos uma cultura de resistência, baseada num ideal de uma nova sociedade, devemos fazer isso com eles, de forma que eles sejam os principais criadores e nós, facilitadores e mediadores da sua produção. Claro que isso não quer dizer que os produtores da cultura de resistência não precisam conhecer os códigos da classe dominante, mas este conhecimento será bem agregado quando os sujeitos envolvidos tiverem claro qual é a sua raiz cultural. Dessa forma, o reconhecimento de uma cultura oprimida contribui no desenvolvimento a consciência de classe que associada à produção da cultura de resistência fará com que os sujeitos tenham claro alguns valores que envolvem a sua produção.

Nesse sentido as ações iniciais desenvolvidas em 2003 e 2005, foram válidas como um primeiro contato principalmente para levantamento de dados, pois posteriormente a realidade apresentou novos desafios. Ficou claro que as ações iniciais produziram uma relação antidialógica, pois a construção foi unilateral. Estas podem ser relacionadas ao conceito de educação bancária de Paulo Freire, pois os artistas levaram arte contemporânea para uma ocupação desconsiderando ou dando pouca importância à produção e as culturas pré-existentes. Cria-se assim uma diminuição do papel dos atores sociais locais e uma supervalorização dos atores externos que se juntam à causa do movimento, mas não fazem parte da realidade local.

A ausência dos moradores nos eventos propostos fez com que tais ações fossem questionadas e alguns artistas puderam entrar em um processo de investigação do seu papel, o que garantiu o início de novas propostas e de um novo movimento interno na ocupação.

A partir daí começou um movimento novo com a intenção de desenvolver propostas que fossem ao encontro dos interesses dos moradores. Foram desenvolvidos alguns projetos educativos, dentre eles, encontros com aulas de arte em que fui propositora. Estes encontros tiveram caráter de estudo exploratório e tinham como principais objetivos: trabalhar a identidade local e individual através de experiências artísticas e levantar necessidades e expectativas dos moradores em relação a novos projetos. A partir da experiência pude concluir e levantar dados relevantes para a continuidade de projetos na comunidade.

Um resultado extremamente significativo da relação mais dialógica e participativa entre moradores e artistas, foi a criação da Biblioteca Prestes Maia. A idéia surgiu de um morador que em seu discurso sempre colocava que uma das principais emergências da Ocupação era o desenvolvimento de projetos educativos. Assim, Severino Manoel de Souza, Catador de Papel, iniciou a biblioteca juntando livros encontrados nas ruas. A biblioteca contou com doações de diversas origens e hoje apresenta em seu acervo de aproximadamente 4500 exemplares.

Os projetos desenvolvidos no ano de 2006 mantiveram essas características que foram iniciadas no final do ano de 2005. Iniciaram-se projetos que vão ao encontro do interesse dos moradores: aulas de alfabetização, projeto de reciclagem, aulas de arte e a biblioteca que sempre recebe doações e não para de crescer.

Estas experiências deixam claro que as propostas necessitam surgir da própria comunidade e se adequarem as realidades para terem um significado coletivo. Para isso precisam ser construídas e elaboradas junto com os sujeitos envolvidos. Dessa forma, artistas e artistas professores podem contribuir no desenvolvimento da cultura interna da ocupação se baseando nos interesses dos moradores.

Para que esta construção coletiva seja possível os agentes de transformação precisam ter claro que também se transformarão durante o processo, pois aprenderão sobre uma realidade da qual normalmente não fazem parte. Aprenderão com os sujeitos os possíveis caminhos que poderão construir juntos, num processo de diálogo e de encontro de interesses que demanda tempo. Esses caminhos não são possíveis de serem construídos apenas com eventos pontuais de artes.

NOTAS


1 Grupo criado principalmente por artistas em junho de 2005.
2 LAMBERT, Gabriela Zelante. Arte-Educação na Ocupação Prestes Maia: uma Contribuição para a Conquista da Autonomia Cultural, 2005.
3 Segundo o relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em 177 países.
4 SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU de 29 de maio a 12 de junho de 2004 - Violações, práticas positivas e recomendações ao governo brasileiro. Segundo o relatório da ONU cosiste em uma parcela mais pobre e marginalizada da população urbana (favelados, sem-teto, moradores de cortiços) e trabalhadores rurais tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas).
5 GRACIANE, Maria Stela. Santos. Pedagogía Social de Rua: uma análise e sistematizaçao de uma experiencia vivida 4ª ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. – (Coleção Prospectiva, v.4). p. 21,22.
6 In: GRACIANI, Maria Stela, op. cit., p. 138. Dados da Pastoral Social de Arquidiocese.
7 SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes, op. cit., p. 37.
8 Idem, Ibidem, p. 36.
9 http://portal.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/emurb/reabilitacao_centro/0001 - acesso em - 07/10/05.
10 BORGES, Fabiane. “Ocupação de Espaços, Almas e Sentidos”. IN: Global Magazine, Revista Global da América Latina, 19 de março de 2004.

Bibliografia


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia Social de Rua: uma análise e sistematização de uma experiência vivida. 4ª ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. – (Coleção Prospectiva, v.4)
LAMBERT, Gabriela Zelante. Arte-Educação na Ocupação Prestes Maia: uma Contribuição para a Conquista da Autonomia Cultural, 2005.
SAULE JÚNIOR, Nelson e CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU de 29 de maio a 12 de junho de 2004 - Violações, práticas positivas e recomendações ao governo brasileiro.

Gabriela Zelante Lambert


http://www.rizoma.net/interna.php?id=343&secao=artefato

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