terça-feira, 2 de janeiro de 2007

O homem sem braço


O homem sem braço morreu. Levou um tiro que veio do espaço. Sempre imaginou que morreria de tempo. Mas não, mataram o coitado. Ele não pôde evitar. Não se despediu do mundo, nem pensou em olhá-lo melhor - com olhos de morto: não agradeceu a ninguém, não se arrependeu de nada, nem mesmo preparou seu enterro. De repente, e naquele segundo mesmo, morreu. As pessoas continuaram andando, os compassos não foram interrompidos.
O fato é que temos um sujeito indeterminado. Completamente indeterminado sob a perspectiva de todos os envolvidos no caso. Inclusive, e principalmente, sob a do morto. O homem sem braço não olhou a cara de seu assassino.
Seria uma demente desvairada vingando a traição de um marido cansado? Um comerciante clandestino, avisando a chegada de sua mercadoria clandestina ao seu clandestino lugar de destino? Ou um de nossos dedicados policiais exercendo aquilo que mais o fascina no santo ofício do abuso de autoridade? Seria uma águia-mãe protegendo um de seus filhotes da violência bêbada de um pai descontrolado? Simplesmente uma queima de arquivo?
Não se sabe quem foi. E até que encontremos um culpado, este permanece indeterminado. Escondido sob a sua carapuça. Bala perdida, para efeito de comodidade e protocolo.
É por isso que permanece aqui, nessa gaveta apertada, mergulhado em sua indigência. Ninguém virá visitá-lo. Não procurarão saber do homem. Ele permanecerá intacto até que resolvam investigar suas entranhas. É para isso que servem os mortos que não têm ninguém. Como os braços são anatomicamente equivalentes, a presença de um compensa a falta do outro. Os jovens futuros médicos disputarão seu único membro superior, dissecá-lo-ão e o fotografarão.
E é certo que nunca determinaremos o sujeito. Ele nunca saberá que matou um homem sem braço que até gostava de viver. Saía pelas ruas, manco de seu braço que faltava não se sabe porquê, e ria para as pessoas como se as conhecesse. Tinha uma longa história a saber, bonita história que eu não conheço. Que está pedida agora no espaço, como as inúmeras outras balas perdidas, soltas e sem direção que andam pelas existências alheias.
Morreu de repente. Alguém deu um tiro que se perdeu no espaço e achou o homem sem braço.

Um comentário:

  1. Ei, é um espetáculo! Precisamos publicá-lo, são devaneios dos devaneios!
    Pões lá!
    Sandra

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