terça-feira, 2 de janeiro de 2007

História de amor


Talvez essa seja a história de amor mais triste que eu conheço.
21 de setembro de 1951.
Aquele dia amanheceu como nenhum outro. Cinza, úmido, de uma tristeza inigualável. A chuva ainda não havia parado quando começaram as contrações. Não era a hora ainda, não podia ser. Mas a criança parecia não agüentar mais. Queria porque queria vir ao mundo, e assim foi: às exatamente 13 horas e 13 minutos escutamos o primeiro dos muitos acessos de choro que se sucederiam.
Jaime nasceu no dia errado. O pai não estava em casa. A vó, doente, continuava preza em sua cama. E a tia, aquela mal amada não calou a boca um instante sequer: de casa à maternidade o que fez foi resmungar e resmungar.
Assim, por insistência, nasceu. E foi crescendo pelos cantos, com grandes olhos mareados, como se fossem derramar à qualquer meia palavra. Na escola ia bem, mas não perguntava. Um dia chamaram a mãe para conversar. A essa altura já havia parado de chorar: substituiu o choro pelo silêncio e seguiu crescendo. Não tinha amigos, sequer inimigos. “O que há de errado com o meu menino?”. A professora não sabia. Era isso, afinal, o que queria saber.
Também me incomodava a boca cerrada. Não conseguia enxergar o que ia além de seu belo rosto em tom pastel. Correr o risco de me perder em seus olhos? Nunca tive coragem. Jaime tinha olhos de peixe. Profundos, mórbidos e – meu Deus! – indiscretos. Pareciam mergulhar nas águas mais profundas da existência alheia e arrancar de lá uma coleção de medos e fraquezas, de pensamentos secretamente guardados, e inconsciências, sujeiras, erros cometidos no passado: tudo o que com muito custo se enterra e se esquece. Eram esses mesmo os olhos de Jaime.
A mãe um dia quis saber: “O que acontece com você?” Mas o menino apenas olhou. E seu olhar disse algo tão grave que a mãe até se arrepiou. E, se arrepiando, chorou. Sob o risco de cair em abismo tão profundo, nunca mais ousou tentar descobrir o que se passava.
Resolveram, num acordo silencioso de olhares vazios, que Jaime seria apenas um apêndice. Assim não teriam que se preocupar com o quão insignificante era a sua prórpia existência e a vida passaria bem. O problema é que ele continuava olhando. Se fosse apenas uma sombra que habitasse os cantos da casa, ou se ficasse trancado em seu quarto como se não existisse mesmo, tudo bem. Eles nem o veriam com seus olhos. Acontece que não. O garoto resolveu habitar a sala-de-estar, como uma grande árvore da qual caem as folhas de agosto. E a sabedoria popular – que imperava mais uma vez – já havia alertado: “apêndices só servem para inflamar”. Jaime não os deixava em paz.
Era difícil, mas evitavam passar pela sala. Se não houvesse outro jeito, passavam. Mas desviavam o olhar. Um dia, não me lembro qual, só me lembro que de sol, Jaime chegou do colégio e foi direto para o quarto. E de lá não saiu nem para almoçar. E lá permaneceu durante três dias seguidos. A mãe já ia tomar providência, mas aí chamaram Jaime na porta: Jaaaaaaime!!!
Era voz de menina.
“Uma menina chamando Jaime na porta!”: todos se olharam boquiabertos. “O que fazer?”.
Não foi preciso. Jaime saiu do quarto e, lentamente, foi até a porta. Nós o acompanhamos com o olhar sem conseguirmos disfarçar o interesse - e suávamos frio. Quando abriu a porta, uma menina surgiu. Branca, com olhos calmos de louça, se aproximou sem dizer palavra. Chegou bem perto de Jaime e o abraçou eternamente.
Ninguém sabia o que fazer. Sair, ficar, convidá-la a entrar. Somente os dois, “anjos de uma asa só”, é que sabiam, e ficaram ali na porta. O mundo deu três voltas e então eles acordaram. A menina recuou um passo e se pôs a olhar fixamente para os olhos de Jaime. (Mal sabia ela que o que fazia era uma cirurgia no apêndice inflamado daquela família.) Outro passo e mais outro e a menina já não estava mais lá. Foi-se embora levando os olhos de Jaime com ela.
Choveu muito nos próximos dias. E nos outros também. O Jaime foi para a janela e por lá ficou, esperando. Mas a menina não voltou. E Jaime não olhou mais. Ficou assim, sem olhar, de um jeito que nem incomodar, incomodava. Por todo o sempre, a mesma figura vazia. Barba grande, unhas grandes, os cabelos não mais lavados, sempre dentro do quarto.
A mãe morreu. A vó, enfim, morreu. E o pai, caminhoneiro, perdeu-se no mundo. A tia já tinha ido embora: casou-se com um coitado que deve se arrepender até hoje do momento em que, aos pés de Deus-Nosso-Senhor, acabou dizendo Sim. Devia estar bêbado... E eu, que nem tinha para onde ir, eu fui ficando. Mas era estranho passar pela sala e não ter em quê(m) se esbarrar. Faltava alguma coisa – alguém – ali no meio. Joguei uma daquelas mesinhas redondas, acreditando que pudesse preencher o oco que se pintou, mas não adiantou. Dessa vez os velhos não tinham razão: a vida sem apêndice não é a mesma coisa.
Um dia, enfim, me chamaram para sair por aí. E eu, que sempre achei que nunca tive nada, eu fui. Num dia de chuva deixei que me levassem embora. Quando voltei, muito tempo depois, o que encontrei foram folhas secas sobre o chão. As janelas estavam fechadas, Jaime não estava lá.
Meu coração ficou pequeno de repente. Então eu sentei ali na porta e deixei que a memória me contasse essa história de amor. Talvez, a mais triste que conheço.
Ninguém amou o Jaime. Todos nós preferimos não encontrar o tesouro que havia guardado por trás de seus longos sílios. Passávamos por ele todos os dias, mas preferíamos não vê-lo, tanto medo tínhamos de nos vermos dentro dos seus olhos. Penso hoje que talvez não houvesse nada de tão obscuro dentro das suas retinas, além do amor que lá esperava, dormindo.

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