quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

A paz do grito



Estamos em guerra? Estamos em guerra. Sempre estivemos? Sempre estivemos. Quem somos nesse tabuleiro de relações pré-construídas? A bandeira que tremula na bula de nossos olhos é uma revolução ou uma reafirmação do que está?

Quero falar de guerrilha. De cultura. De resistência e de arte.

Quero mover os nós que atam esse pacote do nosso tempo. Desatar suas correias de compreensões duvidosas. Caixa de pandora. Caixa preta de avião terrorista. Caixa de surpresa de onde se espera que salte um arlequim, um pop star momentâneo – instantâneo como o leite ninho, que faz por você o que nenhum outro faz; um anjodemônio que possui aparelhos de tv com telas planas de plasma sem sangue no lugar dos olhos.

Por que guerrilha? Por que cultura? Por que resistência e arte?

Agora tudo é guerrilha cultural. Todo aquele que deseja atrair para si o olhar carente de força da juventude (é estranho que essa palavra – juventude – me pareça tão velha nesses tempos!), se apresenta como um guerrilheiro cultural. Mas onde é que está a juventude revolucionária desse momento? Caminho pelas ruas e pelos shoppings. Absorvo os transgênicos fastfood comportados e felizes. Danço entre os meus pares – que eu só sei meus pares pela cor de seus movimentos. Onde estão os que se rebelam?

Para se rebelar é preciso saber que se é oprimido. Cercar o inimigo com um olhar de alteridade. Ter força e vontade para agir. Precisar agir. Compreender o giro das coisas desse tempo escorregadio. Houve mesmo esse tempo em que a lança do amotinado tinha um alvo claro: o peito do monarca absoluto. O poder era tão nítido quanto as pedras de um castelo medieval. O mítico, o profano e o santo tinham, cada qual, sua caverna. Agora. Hoje. O mítico, o profano e o santo coabitam a mesma caverna. Uma tecnocaverna. Onde está o rei? Onde está a lança? Onde está o alvo? Quem se amotina?

Em outro momento, numa fala sobre ‘imagens subversivas’, em 2001, na ‘Semana dos Malditos’ – na Universidade Estadual do Ceará UECE, falei que um inimigo possível seria a ‘Sociedade do Espetáculo’, com suas formas de controle coletivo e seus circos eletrônicos-sensualistas de alienação. Disse que o território último onde se daria essa batalha seria o corpo. O alvo, a idéia-resgate da identidade e que uma das armas seria a arte contemporânea. Mas me faltou compreender - com toda a radicalidade necessária às grandes compreensões – quem seriam os amotinados. Personalidades pop virtuais como Luther Blisset ou reinauguradores de grupos subversivos dos anos 60, como o Provos, renascido nesse momento como metaprovos?.

Embora reconheça o valor das iniciativas que tem como propósito reeditar ações de grupos subversivos históricos, não estou bem certo se o fato da pergunta ‘parecer a mesma’ repetir ‘uma resposta’ anterior seja o caminho mais visceral e válido. Em vários lugares do mundo, muitas pessoas estão criando grupos-citações de grupos famosos, como o Provos (da Amsterdã alucinada ainda e sempre), por exemplo. Até mesmo o instigante filme manifesto de David Fincher, O Clube da Luta, deu origem a grupos – inclusive no Brasil – que se apresentavam como ‘Projeto Caos’, pessoas assinando textos com a alcunha de Tyler Durden, repetindo hipnoticamente os textos dos filme. Atitudes como essas revelam uma nítida estreiteza da compreensão da obra e uma manifesta evidência de uma rasa capacidade de construção do novo. Não é gratuita, no Clube da Luta, a involução das iniciativas libertárias do alter-ego Tyler Durden para o modelo terrorrista-fascista ditado pelos princípios do seu Projeto Caos. O que era busca da natureza dionisíaca, daimônica, libertária, vira anulação de identidade paramilitar: uma aberração complementar à anulação do eu pelo consumismo. Pérola de ironia, esse filme.

Até que ponto o firme engajamento em atividades artivistas nos distancia do propósito mesmo de conquistarmos a liberdade reivindicada?. Para que queremos mais liberdade? O que faríamos se a tivéssemos agora, nesse momento? Será que a liberdade é algo que se decrete? Como é possível libertar? O que temos subjugado dentro de nós que se quer livre? Cultiva-se a liberdade dentro ou fora? Saber-se livre seria o primeiro passo? A liberdade é contagiosa como o riso, como o bocejo, como o desejo de beijar diante do beijo do outro?

Essas questões são fascinantes e necessárias, para se manter a mutabilidade dos nortes conquistados.

O inimigo transita entre o fluído e nômade, entre o emperdenido e o sedentário. A capacidade de cooptar as forças opositoras, projetando sobre elas uma notoridade inicialmente indesejada é extraordinária. É preciso se apropriar das armas do inimigo para usá-las contra ele, tal como descrito no ‘mini-manual do guerrilheiro urbano’ do mariguela. A diferença é que as armas não são mais a sub-metralhadoras, os coquetéis molotov, as granadas e os fuzis FAL. As armas do inimigo são a informação – o trânsito das palavras de ordem, o controle dos meios eletrônicos de distribuição dessas informações, empunhadas pelos legitimadores do discurso oficial: os ideólogos do consumo e de uma globalização para globalizadores, sobre globalizados. A mitificação das grandes marcas, reconhecidas como portos constantes em meio ao movediço cenário da macro economia assassina. Países podem desaparecer. O mac Donald´s sempre será o mesmo. O discurso do inimigo é o discurso da morte. Entendida aqui como aniquilação da identidade diante da gosma homogenia devoradora de individulidade.

As armas da guerrilha são então a contra-informação; a democratização dos meios eletrônicos de distribuição dessa contra-informação; o resgate e releitura dos meios não-eletrônicos de distribuição de contra-informação; a desconstrução dos legitimadores do discurso oficial (convoquemos o arlequim para esse front!), os processos de deturnamento de peças publicitárias – como fazem os congestionadores culturais como o adbusters. E, sim, ela aqui de volta: a arte contemporânea. O grito que liberta a experiência artística da prisão de uma compreensão pré-determinada. A maior parte das obras de arte comtemporânea estão mais preocupas com o processo do que com o controle sobre o resultado.

Armas todas empunhadas como anti-armas. Pois, ao contrário das bélicas possibilidades, as anti-armas matam a morte.

As anti-armas estão mais interessadas na distensão do tempo. Na ampliação do espaço-tempo. Ao contrário da velocidade mortificadora dos meios tradicionais, onde tudo exala uma vida intensa e curta, onde tudo é descartável, os meios de resistência preferem a consistência da experiência. Arriscam resgatar valores e compreensões de mundo. Negam a morte. Vencer a morte é o mais radical ato de resistência.

Onde entra a cultura e a arte ativista nesse processo?

Cultura é identidade.

Quando nos deixamos vencer pela chamada ‘cultura oficial’, formada com a intenção de controlar e homogeneizar, reduzindo a homem a um dígito de caça e consumo apropriadamente chamado de target (ou público-alvo) é como se rejeitássemos a relação com nosso entorno, com nossa história pessoal, com os risos, lágrimas e gritos de nossos antepassados. É uma forma de deletarmos nosso desejo de rompermos cercas, explorarmos o destino das derivas e da maravilhosa experiência da descoberta e do espanto. Da dor e do prazer. Da nossa própria humanidade. Paradoxos de individualização são gerados a todo momento: quantas vezes já fomos bombardeados pela parte menos inteligente da publicidade que promete exclusividade através da aquisição de bens de consumo?. Ter o que poucos podem ter é um parco anestésico para a crise de identidade que assola nossos tempos kafkanianos. Já o antecipava, Marx, no seu ‘fetichismo e mercadoria’.

A arte gera contra-informação. A arte tem um substrato valioso: cultura. Cultura contamina. Contaminado por cultura o homem só dirá ‘sim’ àquilo que reconhecer como sendo parte desse seu novo multi-universo de compreensão. Concordo com Deleuze quando ele aponta que toda a arte é um ato de resistência. Todo ato de resistência é revolucionário. Ora, como disse o poeta da Revolução Russa, Maiakowski: "Não há arte revolucionária sem forma revolucionária", o que pressupõe um novo formato. Uma nova lógica de oposição. Hoje percebemos que a revolução mais eficaz não se dá através de uma síntese ativa de um único embate hercúleo e possante contra o opressor. Com o pensador Hakim Bey, nos anos 80, descobrimos que o ‘levante’ é mais eficaz que a guerra. É como diluir a ação revolucionária no espaço-tempo. Uma ação elástica, distendida, pontuada por pequenas ações, distribuídas por muito, muito tempo. Minando progressivamente as resistências, oferecendo momentos libertários onde se pode viver plenamente a própria originalidade. Contaminação lenta. Sem dar tempo para uma contra-ofensiva. Hakim Bey chama esses levantes de TAZ – sigla de zonas autônomas temporárias. Hoje chamamos esses eventos de ações de Mídia Tática. Falarei sobre Mídia Tática outro dia. É um assunto vasto, merece um tratamento mais elucidativo. Por hora, voltemos para nosso front.

Guerrilha é ”morder e correr”. Guerrilha cultural é contaminação libertária por exposição significativa, pontual, transitória e impactante de atos de resistência.

Muitos defendem que essa ação se dê através de associações de bairros, organizadas com o propósito de ajuntar o máximo de pessoas de dada comunidade e desenvolver atividades de conscientização política, mobilização reivindicatória, instalação de rádios comunitárias e construção de programas culturais estabelecidos segundo as necessidades e características da comunidade. Muitos chamam a essas iniciativas de ações de guerrilha cultural (ou ações de mídia tática)

Nem todo ato de resistência é um ato de guerrilha cultural, embora o seja de certo modo.

A guerrilha pede uma atitude nômade, uma ação impactante e furiosa, espanto e veemência, deslocamento re-significação. ‘Atitude’ entendida aqui não como uma aparência, uma embalagem personal comprável em qualquer loja descolada de shopping ou brechó, puramente estética, resultado da des-significação imposta pelo sistema. Falo de uma atitude apaixonada. Viço e fogo interior catapultados para o exterior em forma de ações. O poeta Ademir Assunção esclarece quando diz: “Não vai haver amor se não houver rebeldia”. A guerrilha cultural é rebelde, apaixonada, avessa a protocolos domesticalizadores. Onde está a subversão do grafitte quando o suporte que receberá essa manifestação é um espaço destinado para esse fim? Apropriação, contenção e des-significação: armas constantes da força de domínio. Guerrilha cultural e desobediência civil andam de mãos dadas. A conquista de espaços não-autorizados, como o espaço público, é o grito de rebeldia da guerrilha cultural artivista. A criação de zonas autônomas temporárias em meio ao caos da urbes equivale a detonação de uma bomba anti-capitalista no cerne de um dos espaços capitalistas de transição.

As interferências urbanas são legítimas ações de guerrilha cultural artivista. Quanto mais impactantes, intensas e nômades forem, mais próximas estarão da idéia de zona autônoma temporária. É claro que os substratos dessas interferências também são bem-vindos como documentos-mnemônicos da ação. Mas uma interferência urbana deve manter seu pico de atividade invariavelmente curto para melhor se relacionar com a transmutação de seu instrumental em paisagem, daí à cegueira coletiva e conseqüente desaparição.

Instalações, performances, cinema, dança, música, poesia, teatro, pintura, quadrinhos, essas e outras linguagens isoladas ou simultaneamente utilizadas podem resultar em extraordinárias ações de guerrilha cultural artivista.

Tenho uma pretensão, aqui: Produzir em tu que me lê o desejo de realizar coisas, interferências urbanas, gritos libertários, festas públicas, eventos, encenações, provocações que gerem o vórtex contaminador de uma zona autônoma temporária. Que todos se tornem guerrilheiros culturais artivistas.

Quem se propõe a ser guerrilheiro cultural artivista deve, necessariamente, se fazer as perguntas mais radicais relacionadas à suas indignações, necessidades e identidade. Deve perguntar aos limites do seu corpo, como instância última à ser conquistada. Deve saber o que grita e o que cala. Deve saber de si e procurar saber do outro, sem projetar suas crenças ou convicções, deve reconhecer o outro como ser único e tocável, atingível, possível à sua ação provocadora.

E, acima de tudo, deve-se achar a paz do próprio grito.

Alguns links relacionados:
http://www.lutherblissett.net/
http://provos.subversao.com/
http://www.adbusters.org/

Paulo Amoreira,
em palestra sobre guerrilha cultural e artivismo ministrada na UECE, por ocasião do evento ‘Fábrica – 5 Dias de Cultura Pop’, em 2002)

vertigem_www.tanomeio.com.br

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