terça-feira, 21 de outubro de 2008

Estar sendo, ter sido

:: trechos




'A solidão tem cor, é roxo escuro e negro... é como se você fosse andando... uma vasta planície, vai andando vai andando, é tardezinha, há até uma certa euforia, um vínculo entre você e aquela extensão... de início parece areia, brilha um pouco, vai 'anoitecendo... que dor Matias... onde? Não, não, é isso de ir anoitecendo, e você vê rostos na amplidão, vaguezas, máscaras, umas se parecem... não, umas desmancham-se assim que aparecem, perfis também... flores também'




'Enfim me deixam. Modere-se, diz Matias. por que? Por que não posso beber até ficar um macaco raivoso, um bode, ou um gambá ou um quati ou um pobre jumento com o peito em chamas e alguém lhe retalhando o peito? Por que? Porque não posso morrer bêbado, incendiado. retalhos da minha carne espalhados pela sala, longas tiras de sangue serpenteando pelas tábuas largas do assoalho, por que não morrer indecente, colérico vomitando, as fezes escorrendo, óóóóóó chamem meus gansos, meus cachorros, chamem aquele desesperado cavalo-inteiro-chaga sendo vergastado por um pulha louco, ali naquele atalho. Eu vi. E alguns riam. A corja humana sempre ri da dor suprema, do estertor dos bichos-ninguém. Sou um bicho-ninguém olhando para o alto, talvez um sapo, um cão pelado, alguém me espanca as patas as costas, salto, encolho-me nos cantos, vem Jeová aos berros: Vottorio! Vittorio! Ama-me! é para o teu bem o sofrimento! É luz sofrer! Dou bengaladas no ar, estou furibundo: sai cornudo nascido do nada, é porque és incriado, sem mãe, é por isso que odeias os que tiveram um ventre como casa, é porque nem casa tens que sobrevoas teus pântanos para ver se encontras um irmão-alguém, porque és único, sem parecença, um olho terror, um olho-abismo, um dissoluto olho-ígneo, um olho condenado à eterna solidão... sim, porque ninguém quer ser o medo de si mesmo. E não podes morrer. A cada dia sugeres aos homens as mais torpes invenções, tudo isso para ver se tu mesmo cais morto, e contigo o imundo que inventaste.'




'Suportar o que percebo dos humanos. Que nojeira. Eu e minhas tripas. Que nojeira também. E o medo que vem vindo derramado, pustulento, às seis da tarde, às cinco da manhã. Anda cravado de espinhos, o sol-kadush se esconde de mim, beijo a mínima frincha de luz, um milímetro de luz debaixo da porta.'




'Quando há fome a poesia é também pobre.'
Don deo




'Ainda estou sóbrio, há um vento polpudo lambendo as bochechas, não há ninguém mais na praia, só um frango negro (ou é um corvo?) e um cachorro mais triste do que a tal fita preta, ele olha igual a mim o horizonte, tento fazer com que se aproxime, vem, vem cachorro! Ele sai correndo, teme os humanos, os pulhas se que dizem feitos à maneira Daquele, nós os imundos, os grotescos e as palavras sempre entupindo arcas armários cestas...'

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