sexta-feira, 4 de março de 2011

A arte de viver para as novas gerações


"Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído enquanto durmo. Os meus gestos inacabados é que me perseguem, não o futuro da raça humana, nem o estado do mundo no ano de 2030, nem as hipotéticas possibilidades, nem as abstrações sinuosas dos futurologistas. (...) O que as outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou menor. A violência apocalíptica da nova geração - o seu desprezo pelos bens intercambiáveis expostos nas prateleiras dos supermercados da cultura, da arte, da ideologia - é uma confirmação concreta de que a realização individual será obra do cada um por si compreendido em termos coletivos - e acima de tudo de modo radical.

Um condicionamento fragmentário substitui a onipresença do condicionamento religioso. E o poder esforça-se por atingir, com grande quantidade de pequenos condicionamentos, a mesma efetividade na manutenção da ordem que era possibilitada anteriormente pelo condicionamento religioso. Isso significa que a coação e a mentira se individualizaram, cercam mais de perto cada indivíduo para melhor o transvasar em uma forma abstrata. Isso significa também que, de um ponto de vista - o do governo dos homens - o progresso dos conhecimentos humanos aperfeiçoa os mecanismos de alienação: quanto mais o homem se conhece pelos olhos da oficialidade, mais se aliena. A ciência é o álibi da polícia. Ela ensina até que ponto se pode torturar sem levar à morte, ela ensina acima de tudo até que ponto podemos nos tornar héautomorouménos, o respeitável carrasco de nós mesmos. Ela ensina como se tornar coisa conservando uma aparência humana.
Não é por meio da disseminação de idéias que o cinema ou sua forma individualizada, a televisão, consegue as suas mais belas vitórias. Em pouca coisa ela consegue dirigir a opinião. A sua influência se exerce de outro modo. De um palco de teatro, os personagens tocam o espectador pela linha geral da sua atitude e pela convicção da sua fala. Na tela grande ou pequena, o mesmo personagem se decompõe em uma série de detalhes precisos que agem sutilmente e separadamente sobre o olho do espectador. É uma escola de expressão corporal, uma lição de arte dramática na qual uma determinada expressão facial ou um movimento de mão traduzem o modo apropriado de exprimir um sentimento, um desejo... Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais tornam-se meios pelos quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos, oferecem uma série de modelos na qual cada um deve escolher um papel. (...) O homem-consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os quais modela seus diferentes comportamentos (lado ativo).
No extremo oposto da identificação absoluta está um modo de distanciar de nós mesmos o papel, de estabelecer uma zona lúdica, uma zona que é um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes à ordem espetacular. Nunca nos perdemos completamente em um papel. Mesmo invertida, a vontade de viver conserva um potencial de violência sempre capaz de desviar o indivíduo do caminho que ele traça. O lacaio fiel que se identifica com o senhor pode também estrangulá-lo em momento oportuno."

Pág 158


"(...) E o homem total nada mais é hoje que o projeto elaborado pela maioria dos homens em nome da criatividade proibida.
(...) Nada existe para descobrir, porque o mundo foi dado por toda a eternidade, mas a revelação espera o peregrino, o cavaleiro, o vagabundo nas encruzilhadas dos caminhos. Na verdade, a revelação existe em cada indivíduo: percorrendo o mundo, ele busca em si mesmo, busca-se ao longe, até repentinamente jorrar, como uma fonte mágica que a pureza de um gesto faz surgir no próprio lugar onde o perseguidor desprovido de graça nada teria encontrado."

Pág 161


"(...) Sob a dissociação existe a unidade; sob a fadiga, a concentração de energia; sob a fragmentação do eu, a subjetividade radical. (...)
Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de perspectiva. É nesse nível que nova teoria revolucionária deve se concentrar a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói uma fase clandestina de tática, a era do jogo.
O estado de degradação do espetáculo, as experiências individuais, as manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele possa se apoderar. Somente subnutrindo de alegria as massas revolucionárias é possível assenhorar-se delas, impedindo-as assim de ir mais longe e de ampliar as suas conquistas.

Não existe uma técnica ou um pensamento que não venha primeiramente de uma vontade de viver. Não existe uma técnica ou um pensamento oficialmente aprovado que não incite a morrer. Os vestígios do abandono são os símbolos da uma história ainda mal conhecida pelos homens. Estudá-los é já forjar as armas da superação total. Onde se encontra o núcleo radical, o qualitativo? Essa é a questão que entra na estratégia da superação, na construção de novas redes de resistência radical. Isso vale para a filosofia: a ontologia testemunha o abandono do ser-como-devir. Isso vale para a psicanálise: técnica de libertação que liberta sobretudo da necessidade de atacar a organização social. Isso vale para os sonhos e desejos roubados, violados, falsificados pelo condicionamento. Isso vale para a natureza espontaneamente radical dos atos espontâneos de um homem, e que é contradita na maior parte do tempo pela visão de si mesmo e do mundo. Isso vale para o jogo, cuja atual restrição a categorias de jogos lícitos - da roleta à guerra, passando pelos linchamentos - não deixa espaço para se jogar autenticamente com os momentos da vida cotidiana. E isso vale para o amor, inseparável da revolução e tão pobremente separado do prazer de dar...

(...) a origem de toda criação reside na criatividade individual. É a partir desse ponto que tudo se ordena, os seres e as coisas, na grande liberdade poética. Esse é o ponto de partida da nova perspectiva, pela qual não existe ninguém que não lute com todas as forças e a cada instante da sua existência.(...)
Nos laboratórios de criatividade individual, uma alquimia revolucionária transforma em ouro os metais mais vis da vida cotidiana. Trata-se antes de tudo de dissolver a consciência das coações, ou seja, o sentimento de impotência por meio do exercício sedutor da criatividade: derretê-los no impulso criador, na afirmação serena do seu gênio. A megalomania, tão estéril no plano da corrida por prestígio no espetáculo, representa nesse caso uma fase importante na luta que opõe o eu às forças coligadas do condicionamento.Na noite do niilismo que atualmente nos envolve, a fagulha criadora, que é a centelah da verdadeira vida, vive com mais fulgor. E enquanto o projeto de uma melhor organização da sobrevivência é abortada, existe, na multiplicação dessas fagulhas que pouco se fundem em uma única luz, a promessa de uma nova organização baseada dessa vez na harmonia das vontades individuais. O devir histórico nos conduziu à encruzilhada na qual a subjetividade radical encontra a possibilidade de transformar o mundo. Esse momento privilegiado é a inversão de perspectiva.

Aqui a poesia é claramente a ação que gera novas realidades, a ação de inversão de perspectiva. A matéria-prima está ao alcance de todos. São poetas aqueles que sabem como usá-la, que sabem empregá-la eficazmente. Além disso, 2 centavos de um material qualquer não é nada se comparado com a profusão de energia sem igual disponibilizada pela vida cotidiana: a energia da vontade de viver, do desejo desenfreado, da paixão do amor, do amor das paixões, a força do medo e da angústia, o furacão do ódio e o ímpeto selvagem da fúria de destruir. Que transformações poéticas não podemos esperar de sentimentos tão universais experimentados como aqueles associados à morte, à velhice e à doença? É dessa consciência ainda marginal que deve partir a longa revolução da vida cotidiana, a única poesia feita por todos, e não por um.

A criatividade, que nem a autoridade dos senhores nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará diante das necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de uma forma abstrata, um sistema, do que para do que para a execução de senhores odiados.
... o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro de seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso a serem liberados, ele já possuiu. É dele mesmo que tira a força e paixão. Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo que a ele se opõe, do mesmo modo que, em uma fita magnética, uma gravação apaga a outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência inssurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a sua impaciência em negar-se, do mesmo modo que é impaciente em executar a sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma.

... três paixões predominantes na destruição da ordem reificada.
A paixão pelo poder absoluto: uma paixão que se exerce sobre os objetos colocados imediatamente a serviço dos homens, sem a mediação dos próprios homens. A destruição, portanto, daqueles que se agarram à ordem das coisas, dos escravos possuidores das migalhas do poder. “Porque já não suportamos o seu aspecto, suprimimos os escravos” (NIETZSCHE).
A paixão de destruir as coações: de quebrar os grilhões. Como diz Sade “podem os prazeres permitidos comparar-se aos prazeres que reúne não somente atrativos muito mais picante mas também o prazer que não tem preço de quebrar os tabus sociais e derrubar todas as leis ?”
A paixão de corrigir um passado infeliz: de reaver e realizar esperanças frustradas, tanto na vida pessoal quanto na historia das revoluções esmagadas.
(...)
O prazer de derrubar o poder, de ser senhor sem escravos e de corrigir o passado concede à subjetividade de cada individuo um lugar preponderante. No momento revolucionário, cada homem é convidado a fazer a sua própria história. A causa da liberdade de realização, deixando ao mesmo tempo de ser uma causa, abraça sempre a subjetividade. Só essa perspectiva permite a embriagues das possibilidades, subir ás alturas vertiginosas onde todos os prazeres são postos ao alcance de todos.
Deve-se cuidar para que a velha ordem das coisas não desabe sobre a cabeça de seus demolidores. A menos que se construa abrigos coletivos contra o condicionamento, contra o espetáculo e contra o espetáculo e a organização hierárquica, existe um perigo real de que a sociedade de consumo nos carregue junto com ela na sua queda final. Desses abrigos devem partir as futuras ofensivas. As micro-sociedades atualmente em gestação vão realizar o projeto dos senhores antigos libertando-o de seu cancro-o hierárquico. A superação do “grande senhor e do homem cruel” aplicara ao pe da letra o admirável principio de Keats: “tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão”. Essa superação deve ser operada simultaneamente em três esferas: a) a superação da organização patriarcal; b) a superação o poder hierárquico; c) a superação da arbitrariedade do capricho autoritário."

Trechos do texto "A arte de viver para as novas gerações", de Raoul Vaneigem

Nenhum comentário:

Postar um comentário