sexta-feira, 4 de abril de 2008

Comentário sobre a insurreição Zapatista em Chiapas

José de Souza Martins

Neste Brasil que sempre se sentiu tão distante da América latina, um comentário de brasileiro sobre os acontecimentos de Chiapas e a insurreição zapatista pode ter as mesmas graves deficiências que teria o comentário de um intelectual comunista chinês ou cubano sobre o lugar histórico e as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Instigado e interessado, arrisco-me, no entanto, a fazer essa espécie de reflexão em voz alta sobre esse episódio da história atual do México. Creio que três temas podem ser considerados e destacados por alguém que, como eu, se empenha em compreender o drama dos pobres da terra, sua subalternidade, suas revoltas inconclusas, sua utopia, seu relacionamento nem sempre fácil com aliados nem sempre lúcidos, geralmente dominados por seus próprios e estranhos motivos de classe média.
O primeiro é o tema da guerra eletrônica. O próprio Marcos enviou mensagem ao New York Times para anunciar que naquele momento a insurreição estava se iniciando. O Pentágono, meses antes, já havia debatido o risco de que a rede mundial de comunicação eletrônica se transformasse num instrumento de insurgências. A Internet, desde então, tem sido um meio importante não só de difusão dos problemas de Chiapas, das reivindicações de camponeses e indígenas e da proclamação de suas reivindicações. O conflito de Chiapas tem uma parcela ponderável do seu desenrolar na mediação da informação e dos setores sociais que manipulam a informação. A atitude do subcomandante Marcos parece mostrar uma consciência clara de que os problemas regionais têm seu centro nevrálgico na capital da formação da opinião pública internacional e no seu instrumento, a mídia.
A guerra de Chiapas é fruto da exacerbação da globalização e do caráter globalizado dos produtos oriundos do Terceiro Mundo. No caso, o café, sua crise e a redução de seu preço a cerca de metade do que era não faz muito tempo. A guerra de Chiapas assume uma feição étnica, mas sua origem está na mercadoria e na delicada relação entre produção direta dos meios de vida e produção de excedentes comercializáveis. Durante muito tempo, o fim da economia colonial escoou-se lentamente promovendo arranjos que evitaram transformações rápidas e formas radicalmente outras de inclusão social e econômica. Nesse sentido, a guerra de Chiapas é uma guerra residual desencadeada pela ultrapassagem dos limites da exploração de tipo colonial e pela inviabilização das formas sociais pactadas para ralentar o pós-colonialismo. Nessa perspectiva, a guerra de Chiapas é também uma guerra colonial residual. Houve uma certa celeuma quanto a ser Chiapas a primeira guerra eletrônica ou a primeira guerra pós-moderna. Pós-moderna, talvez. Mas certamente uma das últimas guerras da descolonização na América Latina.
O segundo tema é o do envolvimento da Igreja nessa espécie de despertar tardio e lento das consciências dos povos oprimidos em nossa América, sobretudo em relação a índios e camponeses.
A insurreição de Chiapas tinha tudo para não passar de um episódio folclórico do atraso cultural e pré-político das classes subalternas latino-americanas. Como tantos casos relativamente parecidos que chegaram às páginas secundárias dos jornais e revistas até os anos 60. Boa parte da visibilidade que o conflito de Chiapas teve e tem tido deve-se, mais do que à mídia eletrônica, ao envolvimento de membros da Igreja Católica, em particular o bispo de San Cristóbal de Las Casas, Dom Samuel Ruiz.
Dom Samuel, que fala duas das quase trinta línguas indígenas de sua diocese, em cerca de trinta anos de presença encarnada na região, colocou pacientemente ao alcance de seus diocesanos pobres a toda informação fundamental sobre o mundo moderno, justamente a relativa ao funcionamento desse mundo e aos direitos que esse mundo proclama como fundamentais à sua identidade e à sua reprodução. Refiro-me aos direitos sociais e aos direitos políticos.
O capitalismo sempre se nutriu da contradição entre a igualdade jurídica e a desigualdade econômica, a desigualdade real como expressão de uma virtude fundamental da cidadania e da igualdade de direitos que ela encerra. Mas, as ilusões essenciais à reprodução do sistema, que têm sido eficazes no núcleo industrial do seu funcionamento, não passaram por provas de eficácia na periferia, nos setores agrícolas e nos remanescentes camponeses. Porque aí, a desigualdade econômica, isto é, o processo de acumulação capitalista propriamente dito, tem sido expressão de efetiva desigualdade social. Em grande parte, porque aí o sistema se reproduz sob a forma de acumulação primitiva de capital, o que justamente restaura e preserva elementos essenciais da chamada economia colonial.
Portanto, teoricamente falando, se na fábrica o desencontro entre o que o operário vende, a sua força de trabalho, e o que o capital compra, a mais-valia, cega o primeiro e enriquece o segundo, nas economias camponesas inseridas no mundo moderno e globalizado só um atraso de consciência, uma demora de percepção da exploração e da injustiça que nelas há, é que assegura que essa forma iníqua de acumulação se mantenha. Mas aí a pobreza é efetiva, a privação de direitos é real e está ao alcance da consciência.
Só o medo e a cultura da obediência e da subalternidade asseguram aquilo que no capitalismo típico e dominante e assegurado pela ilusão da troca justa entre força de trabalho e salário. Nos setores marginais da economia capitalista não há mecanismos espontâneos de geração de ilusões, isto é, de uma alienação, que torne imperceptível a quem trabalha os mecanismos de sua exploração. Baseada no medo e na obediência, a exploração aí depende claramente de mecanismos de poder e de dominação de tipo tradicional. É o que fez por muito tempo da Igreja católica uma peça fundamental de preservação do atraso social e da injustiça social no campo, sobretudo nesta nossa América Latina.
Quando, porém setores importantes da Igreja, especialmente os bispos, de uma nova geração educada na perspectiva da Ação Católica, do personalismo de Mounier e do Concílio Vaticano II, libertaram-se dos vínculos que dela faziam instrumento do poder e do capital, a Igreja passou a ser mais Igreja e menos poder e pôde libertar sua tradição humanística por meio de uma pedagogia da libertação, como se viu em Chiapas. Simplesmente proclamando os direitos e questionando as desigualdades.
Porém, essa possibilidade, perfeitamente própria do magistério pastoral, tem se revelado, em diferentes lugares da América Latina, uma possibilidade vicária, isto é, expressão do poder que tem o bispo como príncipe da Igreja e do carisma de sua condição social e eclesiástica. Aí reside a contradição grave da opção preferencial pelos pobres.
Dom Samuel, já nos episódios decorrentes da insurreição, ao ter que radicalizar seu compromisso com os pobres, exacerbou justamente as contradições das virtudes e possibilidades daquilo que personifica, os antagonismos de sua situação: carisma e poder, profeta e príncipe. Seu compromisso custou-lhe muito: o atentado a sua irmã e ameaças de morte. Custou-lhe, sobretudo, a aparente derrota do profeta pelo príncipe, do carisma pelo poder. Dom Samuel chegou á idade da jubilação e foi jubilado. Indicou um substituto, que foi nomeado e depois removido, para ser substituído por um crítico de seus compromissos e de sua atuação missionária.
Chiapas, através da história de Dom Samuel, nos fala sobre as complicadas contradições desse encontro entre quem quer servir aos pobres e os pobres a quem espera servir. E nos fala, portanto, dos limites institucionais dessa opção e dos limites da missão que dela decorre. Por esse meio, nos fala ainda da relativa fragilidade das insurreições dos pobres, muito dependentes de mediações que são as mediações dos setores radicais da classe média, aqueles que, com justiça, se inquietam com a pobreza e a injustiça, que sabem que em Nova York e no New Yok Times estão os lugares e os meios eficazes de expressão, denúncia e protesto. Não em Chiapas nem no México. Que sabem que a economia globalizada globalizou o poder, a informação e as decisões. E sabem que no poder espiritual da Igreja ainda está um meio essencial de expressão e existência políticas.
Revela-se, assim, portanto, um elemento constitutivo da pobreza que nenhum de nós gosta de discutir: pobreza de meios próprios de expressão política. É preciso usar ainda os meios da própria dependência social, econômica e ideológica para falar ao mundo: num certo sentido, é preciso ser o outro para poder ser a si mesmo. Os limites que o poder impõe ao carisma, que o rei impõe ao profeta, fazem dessa mediação uma mediação necessária, indispensável e limitante ao mesmo tempo. Nela se revelam os limites das lutas camponesas contemporâneas, que só podem ser vencidos com persistência e criatividade.
Um terceiro tema diz respeito ao clamor dos insurretos. Pela primeira vez, salvo engano, um grupo social diversificado fala contra a exclusão (um “conceito” tão estranho ao vocabulário dos pobres) e inclui entre suas demandas, expressamente, a inclusão política e social. Ao faze-lo na circunstância histórica da guerra popular, o grupo é obrigado a definir o indefinido. Ao dizer qual inclusão quer, diz também qual exclusão condena.
Os pobres de Chiapas querem a igualdade, querem os direitos que foram proclamados pela “revolução burguesa” e pelo capitalismo, querem o reconhecimento da diferença cultural e étnica e querem que a diferença deixe de ser um signo de inferioridade para ser um signo positivo de identidade, de peculiaridade cultural, social e econômica. O caráter revolucionário da insurreição de Chiapas está no simples fato de que ela brota das possibilidades que o próprio capitalismo, através do mercado, propõe às sociedades contemporâneas e às populações de diferentes condições sociais e diferentes níveis de integração nas virtualidades sociais do seu desenvolvimento. Propõe, mas apenas realiza de maneira intensamente desigual, recriando continuamente desigualdades e misérias, não raro degradando suas vítimas. Portanto, a insurreição de Chiapas propõe um desafio ao atual desenvolvimento do capitalismo e ao atual modo como a sociedade mexicana está politicamente organizada. Não são os pobres que devem provar do que são capazes. É o sistema que terá que provar que eles não têm razão, tornando reais e efetivas suas esperanças e suas demandas. E isso não está acontecendo.
Nos embates que há por trás dos três temas considerados há também a proclamação da importância do conhecimento crítico da situação, dos fatos e dos desencontros. O conflito de Chiapas, mas uma vez, propõe um desafio interpretativo aos intelectuais latino-americanos. É o desafio de situar a relação histórica entre a luta e a consciência social, o desafio de decifrar no emaranhado de vontades da cena histórica as possibilidades e a eficácia da utopia camponesa e indígena gestada na adversidade de séculos de humilhação e obediência civil, a esperança que nela se anuncia e as superações que propõe.

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